segunda-feira, 6 de janeiro de 2014
domingo, 5 de janeiro de 2014
FICÇÕES DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS
Lucilene
Gomes Lima
FICÇÒES
DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS
Estudo
comparativo dos romances A selva, Beiradão e O amante das amazonas
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.
1.A TEMÁTICA HISTÓRICADO CICLO DABORRACHA.
BORRACHA NAS OBRAS: A selva, Beiradão e O amante das amazonas
CONCLUSÃO.
BIBLIOGRAFIA.
I N T R O D U Ç Ã O
Escritores
brasileiros abordaram amplamente os ciclos econômicos através de sua prosa. A
partir do movimento romântico, alguns romances de caráter regionalista ou
sertanista já abordam as temáticas em torno dos ciclos econômicos, entre eles,
podemos citar O garimpeiro, de
Bernardo Guimarães, em que o ciclo da mineração é subsidiário da temática
amorosa.
Não
obstante, a abordagem literária em torno dos ciclos econômicos ganhou maior
expressão com os denominados romances de 30, em que não apenas ciclos
econômicos, como o do cacau e da cana-de-açúcar são abordados num maior número
de obras, como também fenômenos de calamidade geográfica, a exemplo da seca na
região do Nordeste brasileiro.
O
ciclo econômico do cacau propiciou destaque, principalmente, para a literatura de Jorge Amado, sendo Terras do sem fim (1942) um dos seus
romances mais representativos sobre essa temática. Em torno do ciclo da
cana-de-açúcar, destacam-se as obras de José Lins do Rego: Menino do engenho (1932),
Doidinho (1933), Moleque Ricardo (1935), Usina
(1936) e Fogo morto (1943). O ciclo
das secas motivou igualmente a produção de várias obras: O quinze (1930), de Raquel de Queiroz, A bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, e Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos.
Especialmente
nos romances do ciclo das secas, desenvolveu-se um discurso literário peculiar
e, às vezes, linear, em torno de alguns aspectos como a atuação da seca no
ambiente e suas conseqüências para os agrupamentos humanos. Desse modo, em
torno desse tema, tornaram-se comuns imagens da vegetação esturricada e do solo
fendido pelo sol inclemente, do céu límpido e sem nuvens e das aves de
arribação. Outra imagem comum é a peregrinação do retirante que abandona a sua
terra em busca de condições de sobrevivência. Esse momento do êxodo do
flagelado da seca estabelece uma relação com outro ciclo econômico, amplamente
explorado ficcionalmente, o “ciclo da borracha”.
No
Amazonas, desenvolveu-se uma literatura que abordou o ciclo econômico da
borracha. Uma das primeiras obras sobre este tema, O paroara (1899), de Rodolfo Teófilo, faz a mediação entre o ciclo
da seca e o da borracha, uma vez que trata do deslocamento dos nordestinos até
a Amazônia para trabalharem nos seringais.
Considerando-se
como marco inicial O paroara, a
ficção sobre o “ciclo da borracha” completou um século de produção. Podemos
afirmar que a abordagem teve uma continuidade ao longo desse século, pois cada
década apresenta pelo menos uma obra. Nesse contínuo, evidenciamos uma
constância de abordagem em termos de um tratamento maniqueísta, em que o explorador
(o seringalista) aparece como um ser vilanesco sem que sejam enfocadas as
determinações históricas mais profundas do processo econômico. A recorrência à
História aparece apenas como suporte documental para várias obras que procedem
a enumeração e descrição de alguns tópicos (vida no barracão e nos centros de
extração, carência sexual dos seringueiros, truculência do patrão seringalista,
entre outros).
A
fim de compreendermos o conjunto de abordagem em torno do tema, procedemos a
uma divisão de fases nas quais, pudemos constatar características mais
específicas, entre elas o epigonismo, a partir da reprodução dos estilos de
Euclides da Cunha e de Alberto Rangel. Localizamos as obras que apresentam essa
característica na primeira fase, que compreende as primeiras publicações a
partir de O paroara até A selva, de Ferreira de Castro. Após a
publicação de A selva, a tendência
epigônica não mais se verifica e as obras passam a apresentar estilos diversos.
Verificamos na
maioria das obras da primeira e da segunda fase, a manutenção da constância em
torno do tratamento maniqueísta. Na terceira fase, apontamos a obra O amante das amazonas (1992), de Rogel
Samuel, que promove uma diversificação mais profunda em relação à constância de
abordagem referida. Na primeira e segunda fases, fizemos um recorte de outras
duas obras, A selva (1930),
mencionada acima, e Beiradão (1958),
de Álvaro Maia, por considerarmos que essas obras também promovem uma
diversificação na abordagem ficcional. As três obras que englobam o recorte de
diversificação na abordagem do ciclo foram selecionadas também tendo em vista o
fato de que apresentam uma ligação de seus autores com o mundo do seringal.
Paralelamente também consideramos que essa experiência é perpassada por três
visões distintas dos autores; a do escritor imigrante, Ferreira de Castro; a do
escritor político, Álvaro Maia; e do escritor analista literário, Rogel Samuel.
Nosso
estudo encontra-se dividido em quatro momentos ou partes. Procedemos
inicialmente a um apanhado dos fatores históricos caracterizadores do ciclo.
Esse procedimento teve como objetivo apresentar as determinações econômicas do
ciclo como forma de situar as obras nesse contexto. Na segunda parte do estudo,
apresentamos um apanhado do universo de obras do “ciclo da borracha” na
literatura amazonense a fim de identificarmos a constância da abordagem. Na
terceira parte do estudo, apresentamos as obras que constituem o recorte em
torno da problemática da diversificação e desenvolvemos uma análise particular
de cada uma delas. Encerramos o estudo, procedendo a interligação entre as três
obras e os seus respectivos autores, fazendo uma análise comparativa em que
procuramos apontar tanto os pontos de contato quanto os de afastamento entre os
autores e as obras.
O
referencial teórico que dá suporte ao nosso estudo concentra-se principalmente
no argumento que Mário Ypiranga Monteiro desenvolve em Fatos da literatura amazonense, a saber: a literatura amazonense em
torno do “ciclo da borracha” não apresenta diversificação em relação ao
tratamento do tema. Nessa carência, o autor aponta como exceção o romance A selva, de Ferreira de Castro. A selva é igualmente apontada por Márcio
Souza em A expressão amazonense como
o único romance que conseguiu desfazer o círculo de ostentação das letras
amazonenses, baseado numa retórica vazia e acrítica. Segundo o autor, a obra
desvela realisticamente o processo do “ciclo da borracha”.
Empreendendo
a análise de A selva apontamos
detalhadamente a coerência da organização estrutural do romance em relação à
abordagem do tema. Acrescentamos, todavia, as nossas considerações acerca do
determinismo acentuado na obra, o qual prejudicou a sua construção crítica
sobre o ciclo.
Na
abordagem de Beiradão, consideramos e
dialogamos com o estudo empreendido por Neide Gondim em Simá, Beiradão, Galvez, imperador do Acre: ficção e história.
Especialmente a assertiva de que Beiradão
rompeu com o protótipo do coronel de barranco foi de valia para o nosso
estudo que se pauta pela ocorrência de diversificação nas obras do ciclo.
Consideramos e nos apoiamos também no estudo de Heloína Monteiro dos Santos: Uma liderança política cabocla – Álvaro
Maia - apontando a ideologia subjacente no posicionamento político do autor. Por fim, a análise que procedemos em relação à
obra O amante das amazonas teve como
suporte teórico o texto Crítica da
escrita, do próprio autor, mediante
o qual podemos compreender as concepções estéticas explicitadas na criação de
sua obra ficcional.
1
A TEMÁTICA HISTÓRICA DO
CICLO DA BORRACHA
Origem e exploração da hévea
O “ciclo da borracha” é um evento na história econômica da Amazônia que
enseja farta matéria de estudo. Da atividade extrativa da borracha decorrem
também outros fatos históricos como a conquista do Acre[1] e
a construção da ferrovia Madeira-Mamoré[2].
Em virtude desses fatos, as fronteiras amazônicas foram alargadas, surgindo
novos estados: Acre e Rondônia. A seca nas zonas agrestes do sertão do Ceará,
Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e outros estados nordestinos também
está estreitamente ligada ao ciclo[3] à
medida que os milhares de nordestinos[4]
banidos por esse flagelo formaram o grande contingente de trabalhadores nos
seringais do Pará, Amazonas e Acre.
A espécie que
possibilitou a exploração extrativa e o decorrente fastígio econômico na
Amazônia já era conhecida pelos povos americanos com os quais os colonizadores
europeus tiveram contato. Reis[5]
informa que Cristóvão Colombo, na segunda viagem que fez à América, viu a goma
sendo utilizada pelos índios do Haiti. Por outro lado, de acordo com Rodrigues,
a goma já era conhecida por antigos povos do México – os Mayás e os Nauhás.
Além do emprego para necessidade própria, eles estabeleciam o comércio da goma
elástica com outros povos, chegando a promover exportação em grande quantidade.
Segundo o autor:
[...] As
cidades do Golpho do Mexico, pagavam aos Astecas, annualmente, entre outros, um
tributo de 16.000 cargas de gomma elastica, segundo os melhores historiadores.
Entre outros empregos, que lhes davam, figuravam as bolas para o seu jogo da
péla, que se estendeu, entre algumas das nossas tribus indigenas, até ao sul do
Brazil[6].
Ainda
segundo Rodrigues[7], entre
os povos que se espalharam pela América do Sul, uma das subdivisões da tribo
dos Nauhás que desceu para o rio Amazonas difundiu o uso da goma elástica. Essa
subdivisão tornou-se conhecida como a tribo dos Omáguas. A forma como os
Omáguas extraíam e preparavam a goma elástica era desconhecida até o século
XVI. Quando as missões portuguesas, em fins do século XVII, começaram a ter
contato com as tribos amazônicas, obtiveram com essas tribos os produtos que
foram enviados para a Europa. Entre esses produtos estavam os objetos feitos de
goma.
As
denominações seringueira e borracha surgiram por um acaso
lingüístico. A primeira deveu-se a uma relação metonímica, uma vez que a
seringa sempre aparecia entre os utensílios fabricados com o látex, levando os
portugueses a denominarem a árvore que produzia esse leite de seringueira. Quanto à segunda
denominação, surgiu da associação que os portugueses fizeram em relação aos
vasos feitos de goma elástica pelos índios, os quais lhes pareceram semelhantes
aos objetos de couro que utilizavam e denominavam de borracha. Por extensão de significado, borracha passou a denominar
a substância de que eram feitos os objetos de látex pelos índios.
Os
índios trocavam, com os missionários portugueses, bolas, seringas ou borrachas
por bugigangas. Os missionários haviam descoberto que a goma era útil para
proteger seus pés da umidade excessiva e cobriam os sapatos com ela.
Posteriormente, passaram a confeccionar os próprios sapatos da goma. Já em
1755, os calçados de borracha eram utilizados no Pará e em Lisboa. Aproveitou-se
também a capacidade impermeável da borracha para confeccionar mochilas para os
soldados portugueses. Após Charles Marie de La Condamine enviar para a
França a primeira amostra da goma elástica, em 1735, iniciou-se o emprego
industrial da goma na Europa. As exportações de sapatos e seringas pelo Pará
datam de 1850. Além de objetos manufaturados, exportava-se também a borracha
bruta.
Para
que a goma pudesse oferecer o máximo de rentabilidade à indústria, foi
necessário descobrir uma forma de torná-la resistente ao calor e ao frio e
manter sua elasticidade inalterada. Através do processo de vulcanização,
desenvolvido simultaneamente pelo inglês Thomas Hancook e pelo americano
Charles Goodyear em 1844[8],
isso se tornou possível. A partir daí, a borracha deixa de representar um
pequeno comércio de manufatura, existente desde os tempos da colônia, e passa a
ser uma matéria-prima requisitada pelo comércio mundial:
A procura
intensiva que os mercados consumidores da Europa e da América passaram a fazer da borracha silvestre, ante
a utilização cada vez maior por que ela se apresentava aos industriais,
animando as solicitações pela alta dos preços que pagavam , deu um alento fora
do comum à atividade coletora. Onde existia árvore produtora de látex, registrou-se
a aventura. Nas Américas e na África. Ora, de todas as áreas onde se operava a
exploração da floresta com aquele objetivo, a Amazônia era a que oferecia mais
seguras e amplas possibilidades pela quantidade de seringueiras que parecia
fabulosa pela riqueza que as árvores apresentavam em látex.
A busca às seringueiras pareceu, em conseqüência, sem
fim e negócio de possibilidades ilimitadas [...][9].
Os
preços em alta da borracha no mercado internacional atraíram uma corrida à
extração do “ouro negro”. As terras agrárias foram sendo abandonadas[10]
em função da extração do leite das seringueiras nas regiões do Marajó, Xingu,
Jary, Guamá, Acará, Moju, Madeira, Solimões, Purus. A extração do látex também
se deu em terras da Bolívia, Peru, Equador, Colômbia e Venezuela.
A
falta de estabilidade na terra, o espírito aventureiro e arrivista que
caracterizaram as relações econômicas no “ciclo da borracha” são, muitas vezes,
apontados como falhas que levaram esse sistema extrativista da prosperidade
econômica à derrocada. As bases que fundamentavam a lógica desse sistema,
entretanto, não se apoiavam numa economia fixa e sim de transplante. A própria
estrutura física dos seringais demonstrava que o negócio da borracha exigia
apenas uma infra-estrutura primária que possibilitasse ao patrão ou
seringalista dirigir o processo de extração do látex baseado numa contabilidade
que atava o seringueiro ao trabalho. As condições de moradia do seringalista e
do seringueiro eram improvisadas de modo que cumprissem seu papel no sistema
extrativista. O tapiri do seringueiro não era exatamente uma moradia, mas o
local de trabalho onde ele transformava, num processo rudimentar, o látex
extraído das seringueiras em pélas de borracha. O fato de que o sistema não
promoveu uma fixação à terra está na razão de seu funcionamento[11],
pois se tivesse promovido essa fixação não teria se realizado da forma que se
realizou e os próprios elementos que o integravam não teriam tido na pirâmide
do sistema extrativo a posição que tiveram. Passaremos a explicitar essas
posições a seguir.
As firmas
importadoras-exportadoras e as casas aviadoras
As
bases do sistema extrativista da borracha compunham uma pirâmide em que no topo
estavam as firmas importadoras-exportadoras, representantes do capital estrangeiro,
mais especificamente dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e Alemanha. Essas
firmas movimentavam o capital de giro do
ciclo, não permitindo nenhuma base sólida à economia local, como ressalta
Antônio Loureiro:
As firmas
exportadoras eram, na realidade, as detentoras do capital movimentador do
ciclo, que poderia ser retirado de circulação, em tempo relativamente rápido,
como ocorreu, pois suas transações abrangiam, apenas, a compra da matéria-prima
e a sua venda em mercado certo, sempre em alta. A qualquer sinal de crise, o que podia ser
previsto com antecedência, por não terem capital imobilizado, sairiam da região
com relativa rapidez. Os lucros eram investidos no exterior, ou em companhias
de melhoramentos urbanos, garantidos pelo País.[12]
As
casas aviadoras eram estabelecimentos comerciais que despachavam mercadorias
aos seringais mediante pagamento em pélas de borracha[13]. Eram financiadas pelas firmas exportadoras.
Funcionavam, a princípio, exclusivamente, em Belém e depois passaram a se estabelecer
em Manaus, quando o governo do Amazonas decretou o beneficiamento do látex
nessa cidade. Benchimol denomina o período em que os donos de casas aviadoras
estavam estabelecidos e prósperos em Manaus de “era dos Jotas” numa alusão ao
fato de que a maioria desses aviadores chamavam-se Josés, Joaquins e Joões. O
autor relata que era comum os aviadores receberem o título honorífico de
comendador como forma de o governo português conferir prestígio àqueles
conterrâneos que haviam conseguido enriquecer fora de sua terra. O título era
concedido pelo governo português e também pelo Vaticano.
Em
alguns casos, a comenda que não havia sido concedida oficialmente tornava-se
corruptela para o comerciante português rico.[14]
De todo modo, o status dos aviadores tinha como base real os seus recursos
financeiros que se mediam pelos bens que conseguiam amealhar, entre eles barcos
para transportar as mercadorias para os seringais, indústrias de alimentos,
fazendas de criação. A importância dos aviadores estava na dependência que os
seringais lhes tinham. Sem os aviamentos, esses seringais não funcionavam. A
relação entre os aviadores e os seringalistas era, em grande parte, de troca de
produtos – produtos industrializados pelo produto da natureza – apesar de os
seringalistas também receberem em dinheiro o saldo da transação. A relação de
troca repetia-se entre os seringalistas e os seringueiros. Reproduzia-se, entre
o aviador e o seringalista e entre o seringalista e o seringueiro, a majoração
excessiva do valor dos produtos. Além da majoração dos preços em geral, o
aviador também fornecia aos seringalistas produtos vindos dos mercados
europeus, os quais, mais que encarecer os aviamentos, destoavam dos hábitos
alimentares locais. Leandro Tocantins refere alguns dos alimentos em conserva
que constituíam a alimentação nos seringais e que contribuíam para o
enfraquecimento do organismo por falta de vitaminas e sais minerais:
[...] Ao
esmiuçar-se as notas de fornecimento para os seringais, há uma revelação
surpreendente, que é a numerosa lista de alimentos em conserva: carne de bife,
carne-seca, salmão, sardinhas portuguesas, toucinho, chouriço, atum, ervilhas,
doces enlatados, leite condensado, camarões em conserva, queijos da Holanda,
manteiga francesa, bacalhau português[...][15]
O
historiador Arthur Reis cita uma extensa lista de produtos que eram despachados
nos aviamentos, dos mais necessários ao trabalho de extração e para
sobrevivência no meio da floresta, como as tijelinhas onde se aparava o látex e
as armas para defesa, aos requisitados para outras necessidades, entre elas, o
entretenimento, como é o caso do gramofone. Reis chama a atenção de que os
custos dos aviamentos dependiam da importância dos seringais. Os que possuíam
mais estradas e que, em virtude disso, produziam maior quantidade de látex,
recebiam tratamento prioritário em relação aos seringais menores. Ressalta
também que o custo dos aviamentos tornava-se mais caro para aqueles seringais
que se localizavam em áreas de difícil acesso, como as dos altos rios ou dos
rios encachoeirados. Reis também destaca que “[...] vezes e mais vezes o
seringalista era devedor e não credor [...].”[16]
Isso se dava porque o comércio da borracha era de risco e daí aviadores e
seringalistas estarem sempre preocupados com a oscilação do preço do produto,
especialmente com a queda excessiva do preço que poderia significar a ruína
financeira, o que de fato ocorreu.
Seringalistas ou coronéis da
borracha
Os
seringalistas constituem precisamente o elo intermediário na pirâmide do ciclo
extrativo da borracha. Ligam-se ao aviador, comprador do produto internamente,
e ao produtor ou extrator, o seringueiro. A imagem clássica do seringalista é a
do homem poderoso, de origem quase sempre nordestina, trajando terno de linho
branco “HJ”, chapéu-chile, utilizando bengala e relógio de algibeira. Tornou-se
também comum a imagem dos seringalistas como homens rudes e incultos,
prestigiados apenas por seu poder
econômico. O historiador Arthur Reis destaca que havia seringalistas que
fugiam a esse padrão, possuindo escolarização e boas maneiras, adquirindo
comportamento requintado através das viagens que faziam, o qual se ostentava
nos ricos palacetes que mandavam construir na cidade.[17]
Pesa também sobre os seringalistas a fama de esbanjadores. Assim, tem-se a
imagem de seringalistas que acendiam charutos cubanos com notas de quinhentos
mil réis.[18] Os
seringalistas tornavam-se senhores em seus domínios em função do sistema de exploração a que estavam
manietados.[19] O
débito dos seringueiros lhes dava amplos poderes sobre eles, inclusive de
caçá-los em fuga e recebê-los de volta com auxílio do poder público. Como forma
de reforçar seu status, os seringalistas obtinham, por meio de relações
políticas, a compra de patentes da Guarda Nacional. Desse modo, surgiram os
“coronéis de barranco”. Semelhantemente ao que ocorria com os aviadores, em
relação à comenda, a patente dos coronéis era atribuída por força do hábito de
se considerá-los homens importantes, mesmo que não a tivessem recebido
oficialmente. Atuando como potentados, os seringalistas exerciam força moral,
política e mesmo policial em seus domínios, estabelecendo vínculos de compadres
e afilhados, fazendo conchavos e acordos para apoiar candidatos às eleições
municipais e estaduais, resolvendo brigas, combatendo as invasões de seringais
vizinhos, justiçando criminosos e exercendo poder para prender e punir
seringueiros que fugissem de seu seringal.
O
perfil social do seringalista, que imprimia obediência no seringueiro e o
mantinha subalterno, estava sustentado em uma fraqueza econômica: o capital
fictício. Os seringalistas não possuíam verdadeiramente capital, dependiam do
financiamento de mercadorias das casas aviadoras. Sem essas mercadorias, não
possuíam uma forma de manter o vínculo empregatício com o seringueiro,
arruinando o seu empreendimento. Para obter lucro num negócio tão instável,
lançavam mão da sobretaxa de preços nas mercadorias que repassavam aos
seringueiros. O lucro que obtinham dessa sobretaxa era investido na compra de
residências nas capitais Belém ou Manaus, em tratamentos de saúde, em viagens e
em gastos supérfluos.
Mesmo
não existindo um vínculo empregatício legal entre o seringalista e o
seringueiro, o primeiro impunha ao segundo um regulamento, determinando os seus
direitos e deveres. Deve-se ressaltar que a obediência ao regulamento também se
estendia aos gerentes de depósitos, guarda-livros, encarregados de escrita,
empregados de balcão, comboieiros, fiscais, empregados de campo, diaristas. Um
regulamento de 1934, dos seringais de Octávio Reis, transcrito por Samuel
Benchimol em seu livro Romanceiro da batalha da borracha, esclarece, na
abertura, a necessidade de sua existência.
‘Toda a nação
tem as suas leis para por ellas reger-se, e se, estas leis não são obedecidas por
seus habitantes será uma nação em completa desorganização, onde não poderá
haver garantias para os que nella vivem, nem para quem com ella mantiver
negócios.
Sucede o mesmo
com toda a sociedade que tem os seus estatutos para por elles regerem-se os
seus sócios, e se não se obedece a elles
será uma sociedade desbaratada e sem duração. Até nas casas de famílias, para
serem bem organizadas, teem que obedecer a uma ordem, sem a qual virá logo a
desorganização, e dahi os resultantes desgostos de família, que infelizmente é
o que mais acontece.
Como, pelo que
vemos, tudo precisa de organização e ordem. Um Seringal, por exemplo, onde
habitam centenas e centenas de almas, com diversos costumes, sexos diversos, e
até nacionalidades diversas, não póde deixar de ter o seu regulamento, pelo
qual todos os seus habitantes possam orientar-se de seus deveres de acordo com
as posições e trabalho de cada um’.[20]
O
caráter mercantil do seringal é substituído em determinada passagem do
regulamento pelo conceito de família. “[...] Precisamos notar que no seringal
somos uma só família no cumprimento de nossos deveres, sem excepção de raça,
crença religiosa, nacionalidade e posição [...].”[21]
Nos deveres dos gerentes encarregados dos depósitos, o regulamento prescreve na
linha “h” a exata importância do freguês ou seringueiro nas relações
“familiares” do seringal: “[...] o freguez só é amigo e cumpridor dos seus
deveres quando tem saldo.”[22] A
lógica mercantil do lucro é ressaltada na linha “c”, componente dos deveres dos
empregados de balcão:
[...] o
productor perde dois ou treis dias para vir do centro reclamar uma caixa de
fósforo que lhe saia por engano a mais na sua conta, deixando de produzir
muitas vezes por este pequeno engano, borracha que lhe daria para comprar uma
lata, ficando por este facto mal visto tanto o empregado do balcão como o
guarda-livros que forneceu a nota, e por muitos são ainda considerados de
ladrões. Portanto é preciso a maxima attenção para não se enganar nem a favor
nem contra a casa.[23]
Nos
deveres do extrator, é explicitada a sua exclusiva condição de trabalho: “[...]
Deve ter em consideração que quando vem para os seringaes e se colloca como
extractor, é para produzir borracha [...]”[24] e
de negociação do produto de seu trabalho: “(e) fazer as suas transacções
somente com o deposito onde trabalha para engrandecimento deste, e não o fazer
com outro deposito, mesmo que seja da mesma firma, muito menos com pessoas
extranhas à casa [...][25].
Na
visão do seringalista, a seringueira, fonte da riqueza, “hévea-ouro”, requer o
carinho e o respeito do seringueiro pois, diferentemente do que parece
explicitar o regulamento, ela o transforma em homem livre, apesar de sua
ignorância o prender unicamente ao trabalho de extração:
[...]
Portanto, devemos ter carinho para com a seringueira que nos proporciona tantos
dias felizes e não sejaes ingratos, senhores extractores, para com a árvore
bendita que vos proporciona um trabalho remunerador, que vos livra do chichote
do capataz, que faz do extractor senhor de si proprio, dono de sua casa,
sabendo a que horas que come e que dorme, vivendo em contacto diario com a sua
familia, tendo o conceito de todos, merecendo a estima do patrão que trata o
bom productor como um de seus melhores amigos. Pensem e reflictam que não há
outro mister que favoreça ao homem inculto tantas vantagens, - digo
inculto porque para cortar seringa não
precisa ser formado em cousa alguma, basta somente ter caracter e vergonha para
ser um bom seringueiro.[26]
Num
regulamento como esse, que Benchimol ajuíza não ter sido determinado por um
seringalista desumano, apesar de admitir que os tiranos existiam, é possível
perceber que os seringueiros tinham mais deveres do que direitos. As situações
que prenderam o seringueiro ao seringalista na condição de semi-escravo deram
margem à expressão vilanesca da figura do seringalista na prosa de ficção, como
adiante se verá.
Os seringueiros
Os
nordestinos chegaram em grandes levas à Amazônia, banidos por períodos de seca
inclemente ocorridos no final da década de 1870.[27] A
vinda dos imigrantes nordestinos constituía uma dupla solução para os governos
do Norte e Nordeste: aumentava a oferta de mão-de-obra nos seringais amazônicos
e diminuía o excedente populacional no Nordeste, que aumentara com o
desenvolvimento da economia algodoeira no início do século XIX. O interesse dos
governos amazônicos nessa mão-de-obra, com o fito de aumentar a extração do
látex, levou-os a organizarem um serviço de propaganda e a promoverem a
concessão de subsídios para gastos de transporte. Desde 1852, a Companhia de
Navegação e Comércio do Amazonas, criada pelo Barão de Mauá, iniciara uma linha
regular de transportes que favoreceria o transporte de mercadorias e também dos
milhares de nordestinos arrebanhados para o trabalho de coleta do látex.
O
deslocamento de pessoas para o trabalho nos seringais já ocorria antes da
imigração nordestina. Segundo nos informa Rodrigues, os seringalistas pioneiros
que descobriam uma área rica em seringueiras passavam a explorá-la e convidavam
famílias tapuias a trabalharem nesses incipientes seringais, oferecendo-lhes
“avultados lucros”. Tal como ocorreria mais tarde com os nordestinos, essas
famílias recebiam um adiantamento em mercadorias, roupas e munições para ser
pago com seringa. Os que aceitavam a oferta abandonavam suas criações e
lavouras e acompanhavam o patrão. Ressalta o autor que desse modo “seguiam
familias e extinguiram-se povoações inteiras”.[28]
Apesar desse quadro, foi o deslocamento dos nordestinos que transformou
radicalmente o contingente de mão-de-obra nos seringais e alterou a formação
populacional da Amazônia no século XIX.[29]
Há
quase uma unanimidade no motivo que levou o nordestino a abandonar sua terra e
rumar para a Amazônia para trabalhar nos seringais. A seca e, em decorrência
dela, a falta de condições de sobrevivência, justifica a maioria dos casos. Há,
porém algumas situações em que o êxodo foi motivado pelo gosto da aventura e/ou
pelo desejo de fazer fortuna, sendo que o último motivo, na maioria das vezes,
está consorciado com a condição de flagelado do imigrante, conforme se nota
nesse depoimento de um agricultor, colhido no livro Romanceiro da batalha da borracha, de Samuel Benchimol:
‘Vim mode
conhecer isso aqui. Todos me diziam que o Amazonas era uma terra de bondade. Se
ajuntava dinheiro com ciscador. Era só apanhar dinheiro com as mãos e voltar.
Então, eu disse comigo, que eu ainda hei de conhecer essa terra. Gosto do
inverno, sem comparação. Eu estava em União. A moda lá é vir pro Amazonas. É só
o que se fala por lá. A animação no Ceará é grande. Só se fala no Amazonas, nas
suas riquezas, nas suas facilidades. As coisas por lá andam mesmo ruim. A terra
anda virando pó. Está tão seca que nem língua de papagaio. Não há ninguém que
podendo vir não vem.
Sempre tive
vontade de conhecer isto aqui. Todo mundo me falava nela. Eu vim antes que
fosse tarde demais. Dois anos que faz seca. Estamos entrando no terceiro. Lá é
assim: um ano só verão, no outro não há inverno. Não há quem possa viver.[30]
Esse
depoimento foi obtido, de acordo com o que informa o autor, no período de 1942 a 1944, quando o ciclo
já atravessara a crise que levara a queda vertiginosa do preço da borracha.
Ainda assim, permanecem significativos no relato os mesmos motivos que levaram
à imigração a partir da segunda metade do século XIX.
No auge da imigração, compreendido no triênio
1898/1900, a realidade com que o transumante se deparava, a começar pela viagem
que o levaria aos seringais, era desanimadora dos sonhos de riqueza e das
promessas de facilidade na região amazônica. Viajavam nos porões dos barcos
conhecidos como gaiolas ou vaticanos e chatas.[31] A
passagem, segundo o que lhes informavam quando eram recrutados, seria paga pelo
governo. Ao chegarem aos seringais, os brabos,[32]
aspirantes a seringueiros, descobriam que a passagem assim como as despesas de
viagem, as ferramentas necessárias à extração do látex e os mantimentos para
sobrevivência eram o primeiro débito que contraíam para o trabalho nos
seringais. A saga, muitas vezes inglória, do nordestino na Amazônia, seduzido
por um eldorado que existia na sua fantasia e não na realidade, é sintetizada
por Miranda Neto:
O nordestino
na Amazônia começava sempre a trabalhar endividado, pois via de regra
obrigavam-no a reembolsar os gastos com a totalidade ou parte da viagem, com os
instrumentos de trabalho e outras despesas de instalação. Para alimentar-se
dependia do suprimento que, em regime de estrito monopólio, realizava o mesmo
empresário com o qual estava endividado e que lhe comprava o produto. As
grandes distâncias e a precariedade de sua situação financeira reduziam-no a um
regime de servidão. Entre as longas caminhadas na floresta e a solidão das
cabanas rudimentares onde habitava, esgotava-se sua vida, num isolamento que
talvez nenhum outro sistema econômico haja imposto ao homem. Demais, os perigos
da floresta e a insalubridade do meio encurtavam sua vida de trabalho.[33]
Convém
ressaltar que as doenças que vitimaram milhares de nordestinos, entre elas o
beribéri, advieram da própria qualidade de sua alimentação – geralmente
produtos enlatados e pobres em proteínas. A dependência dessa alimentação que
fazia parte dos produtos aviados pelos seringalistas não era uma decisão
voluntária do seringueiro, constituía, na verdade, peça-chave no funcionamento
do sistema de extração implantado nos seringais, uma vez que se os seringueiros
passassem a se dedicar à agricultura de subsistência, à caça ou à pesca
reduziriam o trabalho de coleta e beneficiamento primário do látex que deveriam
cumprir rigorosamente na rotina de um dia de trabalho, ocasionando, portanto,
menor produção de borracha.
O
historiador Arthur Reis acredita que as condições a que estava sujeito o
seringueiro se justificam por um processo natural e não como fruto de uma
exploração econômica inescrupulosa:
Tais relações
[...] devem ser explicadas pela barbaria do meio-natureza e do meio-sociedade
em formação. Porque, se o aviador e o seringalista exploram o seringueiro, este
não se comporta melhor. Vinga-se com as armas de que dispõe e de acordo com o
primarismo de sua inteligência, das coisas e dos homens. Assim é que negocia às
escondidas a produção de sua safra, lesando o seringalista, entrega-se à
madraçaria, diminuindo a produção ou extraindo
látex por processo proibido para aumentar a purgação e dispor de safra
maior que lhe garantirá saldo-credor.[34]
As
relações que procedem de um processo de espoliação econômica transformam-se,
nessa percepção, num jogo de vingança. A suspeição sobre a honestidade do
seringalista ao lançar a dívida do seringueiro nos livros mercantis foi, por
outro lado, levantada pelo historiador, ao ressaltar que havia a possibilidade
de os seringalistas usarem de expedientes desonestos para manterem os
seringueiros sempre devendo e, em virtude disso, trabalhando para eles.
O
seringueiro, mais do que expropriado do justo valor do seu trabalho, sofre, na
maioria dos casos, a expropriação do direito de constituir família. Para muitos
seringalistas, mulheres e filhos, tal como a agricultura de subsistência,
significavam redução de produção nos seringais. Daí o ser feminino tornar-se
escasso no momento de alta exploração dos seringais, em oposição às famílias
caboclas que caracterizavam os primeiros tempos de exploração. A imagem de
solidão do seringueiro e as histórias de seus desregramentos sexuais têm como
fonte de inspiração a ausência ou escassez da mulher no meio onde se
constituíam os seringais.
O auge e a decadência do ciclo
econômico da borracha
Em 1901, a
produção de borracha na Amazônia atingia 29.971 toneladas, quase o dobro do
número atingido em 1891, que fora de 17.790 toneladas. A partir daí, ocorreu
uma produção crescente até 1911, quando se registrou o ponto mais alto – 44.296
toneladas.[35] A
quantidade de borracha produzida não oculta os sinais de queda nos preços
ocorrida de forma mais intensa principalmente de 1913 em diante, mas é
indicadora de que o mercado amazônico era, até então, o maior mercado produtor
de borracha natural fina.
A fase áurea
do ciclo foi caracterizada pela presença do capital internacional, notadamente
inglês, nas capitais amazônicas. A comprovação de que os ingleses faziam a
linha de frente na comercialização da borracha ostentava-se na instalação de
uma agência do London Bank of South America em Manaus.
Alguns
acontecimentos ocorridos a partir de 1850, como a criação da Província do
Amazonas (1850), a introdução da navegação a vapor (1852) e o decreto imperial
que abriu a navegação do rio Amazonas ao comércio estrangeiro (1871) já
prenunciavam os anos de riqueza promovidos pela exploração da borracha. Segundo
Daou, “[...] entre 1898 e 1900,
a borracha foi responsável por 25,7% dos valores das
exportações brasileiras, sendo superada apenas pelo café (52,7%) ”[36]
O ciclo
ocasionou um processo de transformação urbana durante a segunda metade do
século XIX nas capitais dos estados do Pará e do Amazonas. Esse processo
configurou-se a partir do modelo de modernidade européia. No tocante à capital
paraense, Sarges comenta:
Guardadas as
devidas diferenças em relação às cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, a
cidade de Belém do Pará, apresentaria, assim, a partir da segunda metade do
século XIX, tentativas de adaptação aos modernos costumes europeus, num
profundo contraste com a realidade amazônica, além das tensões sociais geradas
por uma nova ordem social capitalista emergente.[37]
Sarges
pondera que a iniciativa de modernização ocorrida na cidade de Belém decorria
de uma exigência dos grupos que enriqueciam em função do comércio da borracha
representados por seringalistas, comerciantes e financistas.[38]
As obras realizadas durante o período dos grandes lucros com a borracha:
imponentes edifícios,[39]
transformação da parte subterrânea da cidade através da construção de redes de
esgotos, de distribuição de água e gás representavam a “expressão de poder” das
classes em ascensão. O
capital que proporcionava altos rendimentos ao erário público e que patrocinava
as mudanças estruturais na cidade, incluindo uma luxuosa e dispendiosa rede de
entretenimento em que se contavam numerosas casas como o Café Chic, Café da
Paz, Molin Rouge, Chat Noir, Café Madri e Café Riche e as companhias artísticas
vindas da França, Rio de Janeiro, São Paulo, que proporcionavam grande número
de espetáculos no Teatro da Paz para a sociedade paraense, vinha da “formação
de um excedente econômico na região, resultante da extorsão do seringueiro, dos
lucros obtidos pelos ‘aviadores’ e seringalistas [...]” e da “inversão de
capitais (giro e fixo) por pessoas não residentes na região [...].”[40]
Além
de atender às necessidades de conforto e bem-estar dos grupos enriquecidos com
o comércio da borracha, as transformações urbanísticas da cidade de Belém
faziam-se necessárias em razão do fluxo de imigrantes nordestinos que não se
deslocavam para os seringais e contribuíam para o aumento populacional na
cidade e no estado como um todo. No período de 1872 a 1920, a população do estado
passou de 257.237 habitantes para 983.507. O fluxo e a permanência de
estrangeiros na capital também exigiram mudanças estruturais e urbanísticas,
entre elas, a criação de cemitérios, consulados.
O
processo intensivo de urbanização da cidade de Belém deu-se em grande parte
durante a intendência de Antônio Lemos. Em sua administração, a cidade ganhou
pavimentação de ruas, construção de praças e jardins, usina de incineração de
lixo, limpeza urbana e um código de posturas que prescrevia a correta
utilização e manutenção do espaço urbano reestruturado.[41]
O
padrão de urbanidade que caracterizava as reformas promovidas por Lemos
refletia os gastos dos novos ricos da borracha que se pretendiam habitantes de
uma cidade com ares europeus, preferencialmente franceses. Em sua obra Galvez, imperador do Acre, Márcio Souza
satiriza os hábitos desses novos ricos, contrastantes com suas origens locais:
Já se disse
que Dona Irene era uma espécie de folclore familiar de Belém. Vinha de uma
família humilde e tomara o coração do prefeito com suas ancas largas, muita
vivacidade e mais de cem quilos de paixão. Ela procurava se prevenir contra as
falhas de sua infância pobre, mas quase sempre isso não era possível. Mas era
uma criatura necessária à sociedade paraense que assim podia medir por ela o
padrão de suas boas maneiras. Mulher simples e filha do rio Madeira, tinha se
casado com o prefeito quando este ainda era um jovem estudante de Direito.
Casaram escondido e a família, para evitar um escândalo, embarcou os dois
enamorados para o Rio de Janeiro, onde mantiveram Dona Irene prisioneira por
três anos, aos cuidados de um preceptor francês e uma governanta alemã. Saiu
essa força da natureza que cheirava a patchuli e pensava que o cometa de Halley
era um número de circo. Mas colecionava queijos raros que era a paixão de sua
governanta de Potsdam[42]
Assim
como Belém, Manaus, capital do Amazonas, também passou por um processo de
reestruturação durante o período áureo da economia da borracha, mudou
radicalmente seu traçado. Sobre o aspecto da cidade até 1880, antes de sofrer
essa reestruturação, Daou comenta:
Era marcante a
precariedade das ruas estreitas entrecortadas por igarapés, a simplicidade do
casario e a exclusividade do pequeno comércio. A morfologia social era marcada
pelo caráter disperso da população que permanecia boa parte do ano pelas matas,
dedicada às atividades de coleta, caça e pesca [...].”[43]
Foi
durante o governo de Eduardo Ribeiro,[44] a
exemplo do que ocorreu em Belém com Antônio Lemos, que Manaus ganhou ares de
cidade moderna, passando a ser considerada a ‘capital da borracha’. A cidade
sofreu uma planificação, igarapés foram aterrados, as ruas foram modificadas para facilitar o
trânsito. A água foi canalizada e um reservatório de água construído. Houve
também a conclusão de obras monumentais como o Teatro Amazonas, o Palácio da
Justiça, além da construção de escolas, pontes. Em 1893, a cidade passa a ter
seu Código Municipal para restringir os comportamentos indesejados e estimular
os comportamentos apropriados a uma cidade moderna. Como ocorrera com Belém, “Manaus modernizada
atendia particularmente aos interesses da burguesia e da elite ‘tradicional’,
vinculada às atividades administrativas e burocráticas [...].”[45]
É
preciso não perder de vista que o “crescimento” das duas capitais amazônicas
significou o transplante de uma idéia de progresso, fomentada com o ciclo, e
que não alterou a face colonial da economia amazônica, dependente das
contingências do mercado internacional. Urbanidade, civilização, progresso,
tudo isso parece não se coadunar com trabalho semi-escravo, condição de vida
indigna e animalizada nas estradas dos seringais e castigos físicos e morais
para os que se recusassem a aceitar as regras do trabalho, como lembra Souza:
[...] A face
oficial do látex era a paisagem urbana, a capital coruscante de luz elétrica, a
fortuna de Manaus, e Belém, onde imensas somas de dinheiro corriam livremente.
O outro lado, o lado terrível, as estradas secretas, estavam bem protegidas,
escondidas no infinito emaranhado de rios, longe das capitais. O lado festivo,
urbano, civilizado, que procurou soterrar as grandes monstruosidades cometidas
nos domínios perdidos, poucas vezes foi perturbado durante a sua vigência no
poder [...].[46]
A
decadência do ciclo econômico da borracha está inevitavelmente associada ao
crescimento da produção da borracha na Ásia (Malásia, Ceilão, Índia e
Indonésia), resultante da introdução das mudas de seringueiras levadas para
aquele continente pelos ingleses, desenvolvendo ali um sistema de plantação
racional e não mais apenas natural como ocorria na Amazônia. A produção de
borracha amazônica, que era a maior até então, passou a sofrer a concorrência da
produção asiática, não resistindo e entrando em colapso. Apesar do
otimismo por parte de alguns exploradores e investidores em relação à produção
da borracha amazônica, ela era, na verdade, insuficiente para atender a demanda
do mercado mundial, o que ocasionava seu alto preço. A experiência da plantação
na Ásia levou mais de vinte e cinco anos para se desenvolver satisfatoriamente,
mas quando, enfim, a produção se iniciou em 1898 com 1 tonelada e manteve um
nível de produção crescente até atingir
47.618 toneladas em 1913, superando a produção amazônica, esses
resultados compensaram o investimento nas técnicas de melhoramento do plantio e
ofereceram ao mercado mundial abundância do produto a um baixo custo.
O
quadro oferecido pela produção asiática desmantelou o sistema de
exploração montado na Amazônia. Os
investidores abandonaram a região, levando o capital que movimentava a economia
gomífera, capital que mesmo no período da alta cotação da borracha amazônica já
era drenado para fora da região. A esse respeito, Antõnio Loureiro informa que
três grupos se beneficiaram com a comercialização da borracha, sem precisarem
se responsabilizar pelos custos da sua produção: o aparelho estatal que
arrecadou 25% de impostos; os exportadores que compravam a borracha dos
aviadores para revendê-la no mercado exterior e os intermediários,
especuladores das bolsas de Nova Iorque e Londres.[47]
Esses lucros reverteram em benefício de outras regiões brasileiras, ampararam a
produção cafeeira do sudeste, serviram para desenvolver as empresas de
plantação asiática.
A
decadência do “ciclo da borracha” e a conseqüente crise em que entraram os
estados que concorreram para aumentar os saldos de divisas do país[48]
são vistas por alguns estudiosos da história econômica da Amazônia como uma
incapacidade dos governantes locais de gerirem competentemente os recursos da
região, revertendo-os para o seu desenvolvimento. Para Ferreira Filho, essa
constatação não deve ser desviada para outras justificativas de menor
importância, como, por exemplo, o episódio da transplantação das sementes da hevea brasiliensis pelo inglês Henry
Wickham:[49]
[...] Não
creio que tenha havido escritor, jornalista de profissão ou simples
comentarista ocasional que, ao relembrar o episódio do deslocamento da produção
de borracha para terras asiáticas, não se demore em sovar e malsinar o tal
senhor Henry Wickmam, acusando-o de imperdoável crime de haver furtado as
sementes da ‘hevea brasiliensis’ para servir aos interesses de sua majestade
britânica. Essas carpideiras ainda não compreenderam que, tendo a borracha se
convertido em matéria-prima essencial ao bem-estar da humanidade, não poderia o
mundo ficar escravizado à limitada e imperfeita produção dos seringais nativos
da Amazônia. E que, por meios pacíficos ou violentos, mais tarde ou mais cedo,
as nações industrializadas que a utilizavam teriam de apoderar-se de suas
matrizes. O que deve ser pranteado é a nossa incúria e falta de iniciativa,
deixando de formar grandes plantações de seringueiras para neutralizar a tremenda
competição que, cinqüenta anos mais tarde, viria arrasar a economia extrativa
da Amazônia [...].[50]
Benchimol
também questiona se o fato da transplantação da hévea é realmente essencial
para justificar a derrocada do ciclo. O autor argumenta que apesar de o
amazônida cultivar ressentimento desse fato, a borracha não foi o único produto
natural transplantado do mundo tropical amazônico para outros países e
particularmente para o sudeste asiático. Cita uma extensa lista de outros
produtos, como cacau, milho, batata, tabaco, abacaxi, caju, goiaba, maracujá,
mandioca, macaxeira, açaí, guaraná e pupunha, além de plantas medicinais, como
quinino, chinchona, ipeca, jaborandi e o capim-santo. Por outro lado, lembra
que a Amazônia brasileira e países da América tropical também receberam uma
grande variedade de produtos da Ásia e da África, tais como manga, jaca, café,
arroz, cana-de-açúcar, banana, entre outros. Assim, segundo o autor,
[...] os
produtos da flora e da fauna tropical sofreram intenso processo de transplante
e migração entre continentes e países, a partir dos séculos XV e XVI, durante e
após o ciclo dos grandes descobrimentos. Os colonizadores portugueses,
espanhóis, ingleses, franceses, belgas e holandeses tiveram papel importante na
difusão e propagação dos produtos tropicais entre os povos e países da Ásia,
Oceania, África e América. Troca e intercâmbio, que muito contribuíram para
ajudar os países tropicais a enriquecer e
buscar alternativas de desenvolvimento, graças ao seu diversificado
patrimônio biológico e genético e pela aclimatação de novas espécies e
cultivares de híbridos mais resistentes às pragas.[51]
Benchimol
conclui que Henry Wickham não pode ser condenado por ter levado as sementes de
seringueiras sem que se condene também Francisco de Melo Palheta que, à
semelhança do que fez o inglês, também teve de esconder as plantinhas de
rubiáceas (café), trazendo-as de Caiena para as plantações do Pará e Amazonas,
sendo que o café posteriormente seria transplantado para São Paulo e outros estados.
Os
dois autores – Ferreira Filho e Benchimol – vêem naturalidade no episódio da
transplantação da hévea pelos ingleses. O primeiro considera legítima a ação
imperialista inglesa de apoderar-se das sementes da hévea para auferir
monopólio sobre ela. Não parece considerar, ao referir-se à escravidão do mundo
à borracha amazônica, que os ingleses se beneficiavam com essa escravidão tanto
na comercialização da borracha quanto na venda de seus produtos aos
consumidores amazônicos. Portanto, não se tratava simplesmente de acabar com a
escravidão da humanidade à produção de borracha amazônica, mas sim de obter um
meio de exploração ainda mais lucrativo. O segundo, por sua vez, encara a
transplantação da hévea pelo prisma da inevitabilidade da transmigração de
espécies vegetais e animais entre os continentes. Na generalidade, pode-se
dizer que o processo ocorrido com a hévea é o mesmo, mas quando ocorre a sua
transplantação, ela já é um produto natural largamente explorado e de
importância crescente para o mercado mundial. Mais que transplante, levar a
semente da hévea significou assenhorear-se completamente do monopólio de
extração, uma vez que o capital inglês já era um dos principais financiadores
do negócio da borracha, mas ainda não tinha o completo domínio de sua fonte de
produção ou de extração na natureza.
2
A ABORDAGEM DO CICLO DA BORRACHA NA
FICÇÃO AMAZONENSE
O veio aberto
pela pesquisa histórica sobre o “ciclo da borracha” foi também amplamente
explorado pela ficção amazônica e amazonense, em particular. Do
final do século XIX, passando por todas as décadas do século XX, foram escritas
obras que abordaram integralmente ou fizeram referência parcial ao ciclo. O paroara (1899), de Rodolfo Teófilo, é
uma das primeiras obras a abordar o ciclo através da aventura de um imigrante
cearense na selva amazônica. Seguem-lhe Inferno
verde, especialmente o conto “Maiby” (1908), de Alberto Rangel; o conto
“Judas- Asvero” , em À margem da história (1909), de Euclides
da Cunha; Deserdados (1921), de Carlos de
Vasconcelos; A selva (1930), de
Ferreira de Castro; Amazônia que ninguém
sabe (1932)[52], de
Abguar Bastos; Terra de ninguém
(1934), de Francisco Galvão; Marupiara
(1935), de Lauro Palhano; Um punhado de vidas (1949), de Aristófanes
Castro; No circo sem teto da Amazônia
(1955), de Ramayana de Chevalier; Beiradão
(1958), de Álvaro Maia; Arapixi
(1963), de Adaucto de Alencar Fernandes; Dos
ditos passados nos acercados do Cassianã (1969), de Paulo Jacob; Terra firme (1970), de Antisthenes
Pinto; Coronel de barranco (1970), de
Cláudio Araújo Lima; Regime das águas
(1985), de Francisco Vasconcelos; O
amante das Amazonas (1992), de Rogel Samuel e “Três histórias da terra”, em
O tocador de charamela (1995), de
Erasmo Linhares.
Através dessas
obras, o “ciclo da borracha” e, mais especificamente, o mundo do seringal,
desfilou na ficção, tornando-se um tema comezinho abordado na literatura
amazonense. Surgiu, desse modo, um ambiente comum à ficção composto pela margem, onde se localiza o barracão com
as atividades que lhe são peculiares, e pelo centro, o local onde se move o seringueiro e se desenrolam
acontecimentos a ele ligados. Geralmente, o enfoque das obras acentua mais um
ambiente do que o outro ou, ainda, os dois têm pouco destaque no sentido de
serem tratados sem detalhamento. Nesse último caso, importa aos ficcionistas
explorar imagens estereotipadas em torno do seringalista e do seringueiro,
personagens centrais na ficção sobre a borracha. Em romances como A selva e Coronel de barranco,
entretanto, os ficcionistas expõem em detalhes o funcionamento do seringal e o
processo econômico do ciclo. Em A selva,
tanto a margem quanto o centro recebem um enfoque didático. Alberto, o
protagonista do romance, inicia uma ação romanesca que vai desde o recrutamento
para o trabalho no seringal até a sua integração nele, conhecendo-o em profundidade. Inicialmente , Alberto
observa e analisa a viagem no vapor, o tratamento dado ao nordestino, depois
conhece o funcionamento do seringal e sua ingerência na vida dos seringueiros.
Indo para o centro, é guiado pela personagem Firmino, seringueiro manso que lhe
ensina pacientemente a técnica de coleta do látex e os conhecimentos
necessários para sobreviver na selva. Esse aprendizado é explicitado nos
seguintes trechos:
Isto são as
tigelinhas. Se espeta elas na seringueira, pelas bordas. Assim... É preciso ter
cuidado para que a folha fique bem segura, se não a tigelinha cai e o leite escorre todo para
fora. Está compreendendo?
[...]
- Cada
seringueira leva tantas tigelinhas conforme for a grossura dela. Uma valente,
como aquele piquiá que você está vendo ali, pode levar sete. Uma assim como
esta leva cinco ou quatro, se estiver fraca. Corta-se de cima para baixo e,
quando se chega a baixo o machadinho volta acima, porque a madeira já
descansou. Seringueiro malandro faz mutá, mas aqui é proibido.
- Que é isso?
- Vamos
andando que eu já lhe explico. Mutá é fazer um girau com galho de árvore e ir cortar a seringueira lá em cima, junto à
folha. A princípio dá mais leite, mas depois morre.[53]
.............................................................................................................................
- Não lhe
toque seu Alberto!
- Porquê?
- Vai ver...
Despiu a
blusa, numa das mangas envolveu o cabo do seu facão e com a lâmina roçou de
leve o dorso do puraqué.
- Agora toque
aqui... Mas só com um dedo – e indicava o espigão do terçado, que aparecia na
extremidade da madeira. Alberto obedeceu e logo se sentiu percorrido por um
forte choque elétrico.
Firmino sorria
e explicava:
- Esse bicho é
assim. Se um homem tem o coração fraco e lhe toca dentro de água, pode ir para
o outro mundo...[54]
O
romance Coronel de barranco centra-se
mais na margem e expõe o sistema extrativista da borracha através da personagem
Cipriano, seringalista rude que desconhece as determinações econômicas do ciclo
e ignora os riscos a que está exposto, confiando apenas na exploração da
borracha nativa. Como A selva, o romance
tem o objetivo claro de ensinamento conforme se nota nessa passagem em que a personagem Matias elucida para a
personagem Cipriano o sistema de funcionamento econômico do ciclo:
- Veja bem,
coronel. Todos os domingos, os seus seringueiros chegam aqui no armazém, para
se aviar, levam tudo que precisam, a comida, a cachaça, o querosene, alguma
ferramenta, remédios, uma peça de roupa...
- Levam tudo
que precisam. Está aqui o besta velho pra dar tudo que eles querem, fiado.
- Exatamente.
Eles não pagam ao senhor, não é verdade? Tudo fiado, não é verdade? A Casa
Flores manda os vapores carregados de aviamentos...
- Manda, não.
Mandava.
- Sempre
mandou, Coronel. Mas, bem. A Casa Flores lhe manda tudo que o senhor pedir e
até o que não pedir. Cobra do senhor à vista? Algum dia marcou data certa para
o senhor pagar?
- Mas a minha seringa está lá no armazém deles.
-
Perfeitamente. Chegaremos lá. E como a Casa Flores compra essas mercadorias,
todas importadas do [sic] outros Estados ou do estrangeiro? Sobretudo do
estrangeiro. Onde ela vai buscar o
dinheiro, se o dinheiro só pode entrar depois que a seringa for vendida?
- Pra que é
que eles têm a burra cheia de dinheiro?
- Que burra
cheia de dinheiro, Coronel? O dinheiro eles vão sempre buscar nos bancos, Coronel.
E em que bancos? Nos bancos estrangeiros. E como é que se pagam os bancos,
Coronel? Não é como o seu seringueiro para o senhor, quer dizer, quando puder,
quando Deus ajudar.
- Quando paga.
E se o cabra foge? Ou morre? Ou leva o diabo?
- Também não é
assim que o senhor paga a Casa Flores?
- Nunca deixei
de pagar.
- Claro. Mas
paga quando chega a Manaus. Quando a borracha já foi vendida. Quando o senhor
chega lá para acertar as contas, sem data certa, porque o senhor tem crédito.
- Tenho porque
mereço.
- E como é que
a Casa Flores paga o banco?
- Quando
quiser? Só quando puder? Não senhor, Coronel. Numa data certa, num prazo fixo.
E quando chega o fim desse prazo, se não tiver dinheiro, a Casa Flores tem de
reformar a dívida, dar um tanto por conta, para os juros, para esperar vender a
borracha que o senhor mandou e ver entrar o dinheiro. Quer dizer, no fim da
safra.
- Então? Que
novidade, seu Albuquerque.
- Pois bem.
Agora, Coronel, neste ano fatídico de 1914, nesta hora em que se está esperando
uma guerra na Europa, uma guerra em que a Inglaterra terá também de entrar...
- Entrar pra
quê? Besteira de guerra.
- Nesta hora
difícil, Coronel, as matrizes dos bancos de lá mandam ordens às suas filiais de
Manaus para não reformarem os títulos; querem o dinheiro na data marcada, no
prazo fixado. Compreendeu agora, Coronel? Se a Casa Flores não paga, o banco
pede a falência da Casa Flores.
- E por que o
filho do Comendador, homem moço, não vai lá no banco dos bifes e quebra o
focinho do gerente? Se fosse comigo, era assim. Ou um tiro nas ventas.
- Para não
falir, a Casa Flores consegue a muito custo um último prazo, e pede ao senhor
que pague a ela as mercadorias que lhe mandou a crédito durante o ano inteiro.
Pergunto agora, o senhor pode obrigar o seu seringueiro a lhe pagar o que o
senhor vendeu a ele fiado? O resto o senhor já sabe. E não se esqueça que citei
a Casa Flores só para dar um exemplo. Todas as casas aviadoras estão vivendo a
mesma situação, igualzinha, ou até pior. Compreendeu agora o funcionamento da
máquina, Coronel? Compreendeu a situação?[55]
A
presença constante do tema do “ciclo da borracha” na ficção amazonense levou
Mário Ypiranga Monteiro, em Fatos da
literatura amazonense, a criticar o filão em torno desse tema, observando:
“[...] lamentavelmente todo contista que se inicia ou mesmo romancista já
experimentado se deixa seduzir pelo denominador comum da economia da borracha
[...].[56]
Para o autor, o tema do ciclo é o principal motivo do infernismo literário, o
qual consiste em escandalizar a paisagem e explorar a tragédia em torno da
figura opressora do coronel da borracha e da conseqüente submissão do
seringueiro. A ficção da borracha padeceria, segundo sua avaliação, de um
tautologismo ao repetir desgastadamente sempre os mesmos aspectos.
Opondo
o infernismo do “ciclo da borracha” ao edenismo do ciclo do cacau, Monteiro
demonstra as diferenças fundamentais entre esses ciclos. Observa que o ciclo do
cacau promoveu a fixação à terra, criou condições para que se estabelecesse uma
cultura expressiva do sedentarismo burguês. A própria estrutura arquitetônica
da casa-grande do ciclo econômico do cacau ostentava permanência, comodidade,
com sua variedade de janelas, seus quartos amplos, suas salas de jantar e de
estar, seus móveis em estilo clássico e as redes armadas nas salas de jantar ou
à sombra dos cacauais. Já o “ciclo da borracha” apresentou um panorama social
bastante diverso. Sendo economia de transplantação, suas características eram
as relações de desconfiança entre patrão e freguês, suas moradias ostentavam o
aspecto da improvisação dos que não tomavam assento definitivo à terra. Nas
palavras de Monteiro, a sociedade econômica do ciclo
[...] conduz
os trabalhadores da ‘margem’ para o ‘centro’, da liberdade para a reclusão,
isola-os, explora-os, escravíza-os ao regime da conta sem-fim, animalíza-os,
brutalíza-os, inutilíza-os até para a satisfação sexual, instaurando um quadro
de renúncia forçada aos acenos ambiciosos da vida, um estatuto de anacoretismo
em que parece mais evidente o contexto da sabedoria popular: mente desocupada é
oficina de satanás. A ausência da fêmea, nutrindo a preocupação dos machos
famintos de associação e presença, é suprida pela imaginação sofredora e
urgentiza a paródia, a busca de soluções desesperadas. Daí para os conflitos
sangrentos é um passo.
Nasce o
infernismo literário, produto da economia predatória e da paixão solitária.[57]
Monteiro
aponta um tratamento superficial dado pela maioria dos escritores às obras do
ciclo ao afirmar que tanto os antigos quanto os modernos deixaram de perceber o
mundo do seringal por uma via verdadeiramente sociológica que penetrasse a sua
engrenagem internamente e optaram pelo aspecto externo da tragédia fácil.[58]
Para Monteiro, as características da economia de transplantação geraram as
formas de abordagem que enfatizam a negatividade do meio, os comportamentos
humanos aberrativos.
A
ficção em torno do ciclo explorou abundantemente imagens da solidão do
seringueiro na selva, solidão que na maioria das vezes é o degredo do nordestino
retirante, vivendo o estranhamento de uma ambiente que lhe é desconhecido e
hostil. A relação inamistosa do seringueiro com os índios que habitavam as
grandes extensões de terras dos seringais é também um tópico quase sempre
abordado nas obras do ciclo. Via de regra, o indígena aparece como um ser
sanguinário, ameaça ao trabalho do seringueiro, pavor que faz o dia-a-dia nas
estradas de corte de seringa um perigo constante. Além desses tópicos que
geralmente se apresentam nas obras do ciclo, ocorre a constância de alguns
aspectos, muitas vezes estruturadores dos enredos, que se relacionam
diretamente às características das relações de trabalho estabelecidas em função
da extração do látex. O relacionamento do patrão seringalista com o seringueiro
ou freguês motivou a maior parte das abordagens das obras. Os dados históricos
que informam as condições nem sempre justas do vínculo de trabalho entre o
patrão e o freguês serviram de corolário à criação dos ficcionistas, abrindo um
caminho que foi percorrido diversas vezes. Passaremos a analisar, a seguir, a
constância desses aspectos nas obras do “ciclo da borracha”.
A dicotomia explorador-explorado
Seringalistas
e seringueiros são, na maioria dos romances da borracha, as personagens
centralizadoras dos enredos ou, se considerarmos outro aspecto da narrativa,
personagens sob as quais recai a focalização.[59]
As demais figuras presentes nas atividades do seringal, entre elas gerentes,
guarda-livros ou aquelas atreladas ao processo do ciclo, tais como aviadores,
exportadores não têm presença de destaque na prosa do “ciclo da borracha”. Não
se tem a visão do mundo do seringal senão através do seringalista que configura
o explorador e do seringueiro, o explorado.
A
condição do seringalista como explorador da força de trabalho do seringueiro
possibilitou a criação de um estereótipo do patrão truculento. O endosso dessa
imagem veio das próprias relações de trabalho estabelecidas nos seringais. Ao
criar o contrato de trabalho, o patrão seringalista submetia o freguês seringueiro
a um regulamento que estabelecia mais vantagens ao patrão do que ao freguês.
Além das perdas que o seringueiro tinha com a cobrança de um débito que se
iniciava pelo preço de sua passagem ao seringal e acrescia-se com o preço das
ferramentas de trabalho, também era obrigado a se submeter a uma ração
alimentar que meramente o mantinha vivo para o trabalho. No romance A selva,
a percepção do narrador põe-se frontalmente em oposição ao seringalista,
esclarecendo a condição de servidão do seringueiro, vítima da má fé e da
extorsão:
Aquele era
sempre o ‘talão grande’ onde se juntavam as despesas da viagem e mais
empréstimos, que prendiam por muitos anos ao seringal, em trabalho de
pagamento, o sertanejo ingênuo.
Alberto viu-se
com o seu na mão – setecentos e vinte mil réis parcelados por seis ou oito
linhas – e depois, sobre o balcão, meia dúzias de coisas que lhe pareceram não
valer um pataco. Atribuiu a engano a soma alarmante, mas o rabo do olho,
atirado à nota do vizinho, descobriu nela uma quantia igual, repetida em
quantos papéis se estendiam para Binda.[60]
Em
Terra de ninguém, romance de
Francisco Galvão, o narrador também demonstra aversão pela personagem do
coronel seringalista. Identificando-se com os seringueiros, esse narrador
critica o enriquecimento do seringalista, os privilégios que aufere às expensas
do trabalho dos seringueiros. No contexto do romance, a possibilidade de saldo
para os seringueiros é taxativamente negada:
A vida corria
monótona para os quinhentos homens que amealhavam a fortuna do dono do
seringal. Todos lutavam com o mesmo esforço, como polias impulsionando a mesma
máquina. As estradas contribuíam, com o suor humano, para que ele possuísse na
firma J. G. de Araújo, grandes reservas monetárias.
[...]
Mil braços se
estorciam ajudando a engorda pacífica e mansa desse homem, na selva bárbara,
onde a esperança de libertação desaparecia ao tempo em que aumentava o débito
da conta corrente pela desapreciação do preço das gomas.
O que se
atrevesse a falar em saldo, no desejo natural da volta ao nordeste,
arriscava-se a desaparecer, para sempre, à curva de uma estrada, morto à tocaia
mandada fazer pelo Antônio.[61]
Ainda
que prepondere nas obras a desdita do seringueiro que vem para o seringal com o
sonho de enriquecer e encontra apenas trabalho árduo, condições de
sobrevivência precárias e risco de vida, há alguma referência a seringueiros
enriquecidos com o trabalho de extração como nesta passagem do romance Dos ditos passados nos acercados do Cassianã:
[...] Deveras
que muito seringueiro teve de sua sorte. Ganhou dinheiro a valer. Se não gastou
nas safadezas na capital, voltou rico. José Francisco foi um dos agraciados.
Com o saldão recebido, tornou ao Ceará. Montou comércio em Fortaleza, vive hoje
de como que quer. Saber-se de outros, comprando fazenda de criação, engenho,
grandes porções de terras no sertão. Uma dessas se dando, quando a borracha vai
longe. De tirar saldo de não ter onde guardar [...][62]
A
História que, no aspecto geral, serve de base para as ficções da borracha, registra que muitos seringueiros
conseguiram enviar dinheiro para suas famílias no nordeste,[63]
muito embora o quadro apresentado por Euclides da Cunha em seu livro À margem da história não demonstre uma avaliação otimista da possibilidade de o
seringueiro enriquecer através do sistema escorchante do aviamento:
Admitamos
agora uma série de condições favoráveis, que jamais concorrem; a) Que seja
solteiro; b) Que chegue à barraca em maio, quando começa o corte; c) Que não adoeça e seja conduzido ao barracão, subordinado
a uma despesa de 10$000 diários; d) Que nada compre além daqueles víveres – e
que seja sóbrio, tenaz, incorruptível; um estóico firmemente lançado no caminho
da fortuna arrostando uma penitência dolorosa e longa. Vamos além – admitamos
que, malgrado a sua inexperiência, consiga tirar logo 350 quilos de borracha
fina e 100 de sernambi; por ano, o que é difícil, ao menos no Purus.
Pois bem,
ultimada a safra este tenaz, este estóico, este indivíduo raro ali, ainda deve.
O patrão é, conforme o contrato mais geral, quem lhe diz o preço da fazenda e
lhe escritura as contas. Os 350 quilos remunerados hoje a 5$000 rendem-lhe
1.750$000; os 100 de sernambi, a 2$500, 250$000. Total 2:000$000.
É ainda
devedor e raro deixa de o ser. No ano seguinte já é manso; conhece os segredos do serviço e pode tirar de 600 a 700 quilos. Mas
considere-se que permaneceu inativo durante todo o período da enchente, de
novembro a maio – sete meses em que a simples subsistência lhe acarreta um
excesso superior ao duplo do que trouxe em víveres, ou seja, em números
redondos, 1:500$000 – admitindo-se ainda que não precise renovar uma só peça de
ferramenta ou de roupa e que não teve a mais passageira enfermidade. É evidente
que, mesmo neste caso especialíssimo, raro é o seringueiro capaz de
emancipar-se pela fortuna.[64]
Em
decorrência dos dados desabonadores sobre a conduta dos seringalistas apontados
na pesquisa histórica e atestados pelos próprios regulamentos do trabalho no
seringal, ganhou livre curso nas ficções da borracha a figura vilanesca deste
agente econômico em função do qual o seringal se organizava. Não raro ele é
pintado com cores fortes que lhe acentuam o caráter perverso, a exemplo dessa
descrição no romance “Terra de ninguém”:
“homem de poucas palavras, sibilino. Profundamente tacanho e mau, somente
disfarçava a fisionomia moral e se (sic) avistava com algum lêmure político da
cidade”[65]
Na
obra No circo sem teto da Amazônia, o
traço de vileza atinge o paroxismo por conta da caracterização grotesca que dá
à personagem ares teatrais e pelas comparações grandiosas e a adjetivação
abundante:
Jacinto Gazela
é um desses repulsivos queirópteros que riem.
O seu estalão
moral se baliza no limo pegajoso dos barreiros.
O seu ideal é
irmão–siamês do amplexo mortificante do apuizeiro.
Alto, forte,
espadaúdo, pela caraça insondável rastreiam estigmas variólicos. A dentuça
patinada de sarro como o teclado adormecente de um piano antigo, é defendida
aqui e ali pela cárie fagedênica do fumo.
Gazela é um
vulto mórbido e rapace de Alighieri, que o tesourão metapsíquico de um gênio
recortou de um capítulo da Divina Comédia, para grudá-lo depois, numa folha
verde do álbum adolescente da Amazônia.
Todas as
torpitudes, todas as macabras idealizações de um cérebro doentio, alienando
rechãs e deturpando honras e riquezas, residem no âmago daquele bruto.
O seu seringal
“Nova Vida” é um burgo medieval cheio de tiriricas e mucuins. É ele, com pompa
e majestade, um senhor de baraço e cutelo.
O baraço que
manieta o indefeso trabalhador, o cutelo que o estripa nas tentaculares
escroquerias das contas e dos saldos.
Como as flores
carnívoras é o seu sorriso. Desfiado em traquitanas de hipócritas oblatas, ele
se seduz pelo aspecto sereno dos seus verticilos morais. Caída a presa na
fascinação da oferenda inocente, fecha-se a corola na constrição putrívora. E o
ser incauto e bom, parece estrangido e exânime, ao beijo inenarrável do
monstro, cujos esgares semelham os instantes nauseosos da digestão dos reptis.
O seu olhar se
alarga no telescópio ambicioso da conquista.
E lambe os
escaninhos da Terra, arrastando na ânsia incontida, os pequenos trabalhadores e
os humildes industriais. Seu coração é uma víscera metálica, obediente às
imposições de um ritmo mecânico e rapace. Os gadanhos dos seus sentidos solertes
farejam, no amplo cenário da natureza em festa, os vestígios de azinhave das
cafurnas. O sol é de ouro. O rio é uma áurea corrente. Os vegetais só
interessam ao amanhecer e ao sol-posto, quando a luz, em vertigem, nos últimos
acenos da vida a se extinguir, distende as mãos actínicas para chapear de ouro
a coma das samaúmas e o dorso floral dos acapus.[66]
Um
exemplo que bem se adequa à descrição do tipo de seringalista perverso de No circo sem teto da Amazônia figura
também num encaixe[67]
contido no romance Um punhado de vidas em que um seringueiro com saldo
decide partir do seringal e para tanto reivindica o valor que lhe é devido. Em
resposta, o seringalista propõe-lhe que vá caçar veado antes de partir para não
esquecer do seringal no qual trabalhou tantos anos. O seringueiro fica
intrigado com a proposta e é informado por outra personagem que a caça se
tratava de uma cilada armada para os seringueiros com saldo. Mesmo desistindo
de cobrar o saldo e apenas manifestando o desejo de ir embora, o seringueiro é
mais uma vez intimidado pelo patrão, que para lhe provar do que é capaz, mata
um empregado em sua presença como se abatesse um bicho.[68]
As
demonstrações da vileza do caráter do seringalista se configuram nos castigos
que infringe aos seringueiros que desobedecem suas ordens diretas ou os
preceitos do regulamento. No romance Coronel
de barranco, o seringalista pune um seringueiro que desobedece a ordem
de não cultivar horta nem caçar ou
pescar a fim de promover outra forma de sobrevivência além daquela obtida
através dos aviamentos, pondo fogo na pequena plantação que esse seringueiro
havia cultivado às escondidas nas horas que lhe sobravam do trabalho de
extração e defumação do látex.[69] O
romance Terra de ninguém, por outro
lado, apresenta um seringueiro castigado com o aprisionamento no tronco por ter
reclamado da qualidade do sabão que recebera no aviamento.[70]
Em
Regime das águas, o instrumento
descrito na prática de tortura é uma palmatória chamada “melindrosa”. A cena em
que o seringalista é intimado a dar esclarecimento ao juiz sobre o objeto
ressalta a empáfia daquele, cônscio de que é a lei em seus domínios:
[...] O juiz,
moço novo ainda, com ares de muita importância, foi logo entrando no assunto,
sem dar tempo a qualquer conversa. Queria saber que história era aquela de uma
palmatória de dois quilos que, segundo denúncia recebida, costumava usar no
seringal, judiando daquela pobre gente indefesa. Seria verdade tamanho absurdo?
- Mas foi aí
que o homem da lei se enganou – dizia João Firmino, com sentido orgulho da
coragem do patrão. – Então pensava ele que ia o homem amofinar, meter o rabo
entre as pernas e arranjar uma desculpa qualquer para sair da encrenca? Nada
disso! O patrão era cabra macho, homem de vergonha e de muita firmeza. E
comentava com largo sorriso a resposta que, sem qualquer demora, dera o patrão
à interpelação do magistrado:
- Dois quilos
não, seu juiz! Quase três. Esse, com todo respeito à pessoa do Doutor Juiz, o
peso da melindrosa. E digo mais, seu
Doutor, ela só serve mesmo para corrigir cabra safado e mulher fuxiqueira.[71]
Desse
modo, punições e castigos físicos são circunstâncias comuns na ficção sobre a
borracha. Exercer algum tipo de violência sobre o seringueiro é uma forma de o
seringalista expressar sua autoridade e fazer-se respeitado. Expressando esse
poder sem limites estabelecido no seringal, o narrador do romance memorialista Arapixi comenta: “O patrão se faz
respeitar e obedecer por sua menor ou maior perversidade, pela grandeza de seu
coração, por sua autoridade moral, por sua bondade de alma, por seus
sentimentos humanos, pela grandeza de seus gestos, ou pelo horror de sua ação
sanguinária. É um homem que na planície varia na conformidade do ‘centro’ na
vulgaridade dos hábitos, na conduta da freguesia, sem peias, sem escrúpulos,
sem formalidades”.[72]
Dos
instrumentos utilizados pelo seringalista como forma de punição, o tronco
figura como o mais referido e o mais abominável tanto que leva o negro Tiago,
personagem de A selva, a pôr fogo no
barracão como ato de revolta contra o patrão que usara desse expediente de
tortura contra os seringueiros que haviam tentado fugir do seringal.[73]
A
utilização do tronco nos seringais estabelece uma curiosa relação dos hábitos
do mundo do seringal como os da sociedade patriarcal escravista. Para
Tocantins, ambos os contextos se assemelham, a começar pela economia baseada na
monocultura, com a diferenciação de uma ser agrícola e a outra extrativa. O
patriarca representado na figura do seringalista seria outro ponto de contato.
Também o barracão do seringal, apesar de apresentar aspecto mais tosco,
guardaria semelhança com as casas-grandes dos engenhos de açúcar do Nordeste.
Sobre o ciclo da cana de açúcar e o da borracha, o autor pondera: “[...]
Dessemelhantes em forma e grau, mas semelhantes na essência comum do
patriarcalismo, a civilização da borracha aproveitou muitas das constantes
culturais daquela, naturalmente adaptando-as às realidades do meio amazônico,
num interessante experimento de assimilação”.[74]
Associam-se
nas ficções da borracha o caráter perverso do seringalista e a sua ignorância a
ponto de ser ele um tipo alienado do que ocorre no mundo, como o coronel
Cipriano, do romance Coronel de barranco,
que não acredita na possibilidade de haver concorrência da produção de borracha
asiática com a amazônica até sofrer as conseqüências desastrosas da baixa de
preço. Cipriano encarna a figura de um bronco enriquecido que, apesar de
receber mercadorias finas nos aviamentos, desconhece a procedência e o valor
delas. Desconhece também o contexto histórico local e mundial de sua época,
julgando tolice se interessar por qualquer coisa que não seja produzir borracha
em seu seringal. Menos caricata é a figura do seringalista de A selva, mas talhada pelo mesmo estigma
de homem rude, conforme fica aduzido nessa passagem do romance em que ele
manifesta inveja do guarda-livros por este possuir modos diferentes do seu,
expressivos de polidez e educação:
Apenas aos
sábados o jantar e as noitadas se animavam, mercê da presença de Binda, Caetano
e Balbino. Corpos modelados no mesmo barro, veias dando curso ao mesmo sangue,
Juca Tristão compreendia-os totalmente. Imperava sorridoso, e deixava-se
adular. Podia beber em liberdade, dizer o que lhe aprouvesse, ser completamente
ele, sem sentir a enervante noção duma vaga inferioridade, como lhe sucedia
quando estava ao lado de Guerreiro. Passara a irritar-se, intimamente, com as
falas mansas do guarda-livros e sua cortesia bondosa, pelo respeito que
inoculavam. Sentira, pouco depois de voltar, que a simpatia dos seringueiros ia
mais para o guarda-livros do que para ele; e essa verificação despeitava-o e
exalava vastas suspeições. Quem sabia lá o que Guerreiro lhes havia insinuado!
Também a ele seria fácil mostrar-se generoso e simpático, se administrasse fazenda
alheia. De tudo quanto fosse mau se sacudia a chuva e só o bom se chamava a si;
tratava-se com modos doces uns safados que não trabalhavam, vendia-se mais do
que se devia vender, não se castigava o preguiçoso e desculpava-se o que não
tinha desculpa nenhuma, porque quem perdia e quem pagava era o patrão, era o
tolo, que já tinha idade para ter juízo![75]
Esse
trecho também é ilustrativo de que o seringalista justifica sua rudeza de
caráter como algo inevitável no papel patronal que exerce. A mesma justificativa
é dada em Regime das águas pela
personagem de um fiscal de barracão: “[...] A lei, na selva, não podia ser
outra que não aquela ditada pelo patrão. Só ele, a partir de seus propósitos e
interesses sabia o que estava certo ou errado [...]”.[76]
Em
virtude do constante decalque no perfil mau, grosseiro e injusto do
seringalista, desponta nas ficções da borracha uma galeria de nomes que se
tornam sempre destacados tão logo se enunciam os enredos: “Manuel Lobo”, de Terra de ninguém; Juca Tristão”, de A selva; “Jacinto Gazela, de No circo sem teto da Amazônia;
“Cipriano”, de Coronel de barranco,
Macário Gomes, de Dos ditos passados nos
acercados do Cassianã, entre outros. Os nomes dos seringais, considerados
feudos desses “coronéis” da borracha compõem uma curiosa toponímia para os
conflitos que ali se dão: “Remanso”, “Paraíso”, “Vida Nova”, “Fé em Deus”.
As
personagens dos seringueiros, por seu turno, não apresentam traços tão marcados
quanto as dos seringalistas, são mais coletivas do que individuais. As personagens
“Firmino”, de A selva,; “Zé Vicente”,
de Terra de ninguém e “Joca”, de Coronel de barranco, típicos imigrantes nordestinos que poderiam realizar
seringueiros protagonistas, são secundárias nas narrativas. Cabe destacar que
nesses três romances, os protagonistas são homens que vêm para o seringal por
aventura, como “Anatólio”, de Terra de
ninguém, que tendo crescido num ambiente de abastança, decide conhecer
“[...]a selva enorme, eriçada de mistérios, grávida de perigos, onde melhor
aprenderia a conhecer os segredos da Vida”,[77]
“Matias”, de Coronel de barranco, que
após aventurar-se na Europa por trinta anos, decide “ruminar o ideal de viver
isolado num pedaço de mata, compondo e escrevendo os versos que já planejara em
silêncio”[78] e
“Alberto”, de A selva, imigrante
português que vai para o seringal quase acidentalmente, sem supor que o destino
seria ser seringueiro.
Assim
como a imagem do seringalista nas ficções da borracha parece fadada à vilania,
a do seringueiro liga-se à sujeição. A sua condição de subjugado é ressaltada
na descrição de homens tristes, cabisbaixos, apáticos. Freqüentemente, os
seringueiros são comparados a escravos e as suas condições de recrutamento os
põe, não raro, abaixo da condição humana: “Cinqüenta homens na proa. Seu Isidro
vinha sempre à tardezinha ver como íamos passando. Contava-nos como se fôssemos
animais [...]”[79]
Apesar
de não ser a tônica das obras sobre o ciclo,[80] a
revolta dos seringueiros é abordada em algumas obras. Entre elas, Beiradão, onde é narrada a vingança dos
seringueiros contra o proprietário do seringal “Boa-Vida”, um patrão cujo
caráter sórdido leva os fregueses a lhe retribuírem na mesma moeda:
Deu-se, então,
a tragédia. Aguardaram a saída do motor que deixara mercadorias para o verão
inteiro, cercaram armazéns e o barracão, pela madrugada. O coronel não podia
reagir, pois os empregados haviam retirado as armas, durante a noite.
Amarraram-no
primeiramente, amarram a mulher, a cozinheira, as três filhas menores.
Cevaram-se nas quatro, banquetearam-se em frente das vítimas todas despidas,
cunhatãs foram pisoteadas, após o geral [...][81]
As
sevícias sexuais são também a forma de vingança dos seringueiros no romance Terra firme, que obrigam o empregado a violentar o patrão seringalista.
Nesse romance, o mundo do seringal não absorve a narrativa integralmente, mas o
encaixe contido no segundo capítulo, constituindo a história do seringueiro
nordestino Creto, narrada por ele próprio, abrange sua vinda para o seringal, o
abandono da estrada de corte de seringueiras e a formação de um grupo de
seringueiros e caucheiros do qual passa a ser o chefe. Suas andanças com esse
grupo de homens pela mata lembram as de um chefe de cangaço. Ao final dessa
narrativa, a vingança contra o coronel seringalista é, como nos outros casos,
violenta.[82]
O
motivo que enseja o conto “Judas-Asvero” é igualmente uma revolta dos
seringueiros, porém não tem como alvo o seringalista. Nesse conto, os
seringueiros voltam-se contra si mesmos, construindo no sábado de aleluia um
Judas a sua própria imagem para depois destruí-lo. Tal qual ocorre em outras
obras, os seringueiros são vistos como seres martirizados, com “[...]
existência imóvel, feita de idênticos dias de penúria, os meios- jejuns
permanentes, de tristezas e de pesares, que lhes parecem uma interminável
Sexta-feira da Paixão, a estirar-se, angustiosamente, indefinida pelo ano todo
afora.”[83]
Apesar disso, não se revoltam ante o desamparo por deus: “[...] não se rebelam,
ou blasfemam. O seringueiro rude, ao revés do italiano artista, não abusa da
bondade de seu deus desmandando-se em convícios. É mais forte; é mais digno.
Resignou-se à desdita [...]. [84]
Sem representar uma indignação direta contra o seringalista, o conto detém-se
em uma revolta interiorizada, em uma autopunição: “[...] só lhe é lícito
punir-se da ambição maldita que o conduziu àqueles lugares para entregá-lo,
maniatado e escravo, aos traficantes impunes que o iludem – e este pecado é o
seu próprio castigo, transmudando-lhe a vida numa interminável penitência
[...]”.[85]
Ao mesmo tempo em que o Judas representa o sofrimento do seringueiro,
acarretando piedade por sua condição, é também uma figura que desperta medo:
“[...] À medida que avança, o espantalho errante vai espalhando em roda a
desolação e o terror: as aves retransidas de medo, acolhem-se, mudas, ao
recesso das frondes; os pesados anfíbios mergulham, cautos, nas profunduras,
espavoridos por aquela sombra que ao cair das tardes e ao subir das manhãs se
desata estirando-se, lutuosamente, pela superfície do rio; os homens correm às
armas e numa fúria recortada de espantos, fazendo o ‘pelo sinal’ e aperrando os
gatilhos, alvejam-no desapiedadamente.”[86] A
imagem final do conto, os Judas–espantalhos que vão descendo o rio, juntando-se
num festival fantasmagórico, metaforiza a condição dos seringueiros recrutados,
embarcados e despejados ao longo dos rios onde se instalam os seringais:
E vai
descendo, descendo... Por fim não segue mais isolado. Aliam-se-lhe na estrada
dolorosa outros sócios de infortúnio; outros aleijões apavorantes sobre as
mesmas jangadas diminutas entregues ao acaso das correntes, surgindo de todos
os lados, vários no aspeito e nos gestos: ora muito rijos, amarrados aos postes
que os sustentam; ora em desengonços, desequilibrando-se aos menores balanços,
atrapalhadamente, como ébrios; ou fatídicos, braços alçados, ameaçadores,
amaldiçoando; outros humílimos, acurvados num acabrunhamento profundo; e por
vezes, mais deploráveis, os que se divisam à ponta de uma corda amarrada no
extremo do mastro esguio e recurvo, a balouçarem, enforcados...[87]
A escassez e a ausência do ser
feminino no seringal
O
segundo aspecto que aparece com maior freqüência nas ficções da borracha é a
escassez ou mesmo ausência da mulher no ambiente do seringal.[88]
Sobre o desdobramento que o problema da escassez da mulher teve e poderia ter
na ficção, Benchimol observa:
A grande
angústia do tapiri era a solidão. E solidão é falta de mulher e amor. Isso até
já se tornou tema comum e obrigatório em todo romance sobre a Amazônia. O
seringueiro daqueles tempos, e ainda hoje, com intensidade já muito diminuída
pela imigração do elemento feminino que passou a acompanhar o homem, ou era um
homossexual ou um onanista. Há ainda análise minuciosa a ser feita entre o sexo
e a seringa, entre a mulher, o tapiri e a ‘urbs’. Talvez resida numa bem
estudada psicanálise da seringa, as origens daquelas alucinações dos ‘aureos
tempos da borracha’[...].[89]
A
escassez da mulher no seringal possibilita aos ficcionistas enfoques em
permutas, violências sexuais contra mulheres de idade avançada ou meninas
impúberes e ainda violência contra os companheiros de mulheres que são atacados
e mortos por outros seringueiros desejosos de as possuírem. A ausência da
mulher possibilita enfocar a prática do bestialismo, através do qual o
seringueiro procura satisfazer o instinto sexual com fêmeas animais, entre elas
a fêmea do boto e a égua.
A
transferência da mulher de um seringueiro devedor para outro seringueiro é
assunto do conto “Maiby”, contido no livro Inferno
verde, de Alberto Rangel. Ao se iniciar o conto, o narrador esclarece que o
pagamento de dívida tendo como objeto de quitação a mulher era negócio como
outro qualquer no seringal: “[...] O Sabino devia ao patrão sete contos e
duzentos, que a tanto montava a addição das parcellas de dividas de quatro
annos atraz, e cedia a mulher a um outro freguez do seringal, o Sérgio, que por
sua vez assumia a responsabilidade de saldar essa divida. O mais comum dos
arranjos commerciaes, essa transferencia de debito, com o assentimento do
credor, por saldo de contas”.[90]
O
conto demonstra que uma mulher pode se tornar dispendiosa para um seringueiro.
Sabino, a personagem que dá a mulher em pagamento da dívida, o faz porque
apesar de querê-la em sua companhia para amenizar a solidão, tem a dívida em
muito aumentada depois de se unir a ela. Uma vez que a dívida inviabiliza a sua
liberdade, ele opta por se desfazer da mulher. “Maiby” atesta que no mundo do
seringal, onde negociar mercadorias tem importância vital, a mulher torna-se também
mercadoria. Quando não ocorre uma troca como a que é narrada no conto, a mulher
é encomendada entre os itens dos aviamentos.[91]
O
desfecho dado ao conto possibilita estabelecer a relação entre a mulher e a
seringueira, uma vez que Maiby, a cabocla de propriedade do seringueiro Sabino
e depois transferida ao seringueiro Sérgio, é unida à árvore num amplexo
mortal. Sabino negocia a troca da mulher pelo débito, mas não consegue se
resignar com a negociação e impulsionado pelo descontrole mental de não superar
a perda da mulher, sacrifica-a, amarrando-a à árvore e extraindo seu sangue que é aparado em
tigelinhas, tal como se apara o leite da seringueira. No conto, os significados
da mulher e da seringueira para o seringueiro aproximam-se em vários pontos. Como
a seringueira, a mulher não pertence ao seringueiro, é um bem do qual só pode
usufruir quem sobre ele adquire direito. Maiby passa a ser propriedade de
Sérgio porque ele possui condições de tê-la. A seringueira, por sua vez,
pertence ao patrão que domina os meios de produção do seringal. Sabino tem a
ilusão de que a seringueira lhe pertence porque é o extrator de sua riqueza,
assim como ilude-se que a mulher lhe pertence quando de fato ela pertence a
quem pode pagar por ela. As posses mal realizadas da seringueira e da mulher só
podem ser compensadas com as mortes de ambas. Cortar a seringueira para extrair
seu leite é uma forma de matá-la, sangrar a mulher até que se esvaia todo o seu
sangue, também. A cena final expõe os dois seres mais explorados do seringal e
é extensiva, como faz notar o narrador, do processo predatório da natureza como
um todo:
O martyrio de
Maiby, com a sua vida a escoar-se nas tigelinhas do seringueiro, seria ainda
assim bem menor que o do Amazonas, offerecendo-se em pasto de uma industria que
o exgota. A vingança do seringueiro, com intenção diversa, esculpira a imagem
imponente e flagrante de sua sacrificadora exploração. Havia uma aureola de
obração n’esse cadaver, que dir-se-ia representar, em miniatura, um crime
maior, não commetido pelo Amor, n’um coração desvairado, mas pela Ambição
collectiva de milhares d’almas, endoudecidas na cobiça universal.[92]
O
romance Coronel de barranco também
apresenta um caso de negociação da mulher, sendo que, desta vez, ela é uma
mercadoria trazida pelo regatão. Este é um dos poucos romances da borracha em
que o seringalista é solteiro e leva a
vida a divertir-se com prostitutas estrangeiras nas viagens que faz a Manaus.
As obras, em geral, apresentam seringalistas casados que aproveitam as viagens
para aventuras extraconjugais. Cipriano, a personagem do seringalista, em Coronel de barranco, permanece sem
mulher no barracão, até que recebe do regatão uma mercadoria que lhe custa um
punhado de notas de quinhentos réis. A chegada dessa mercadoria é assim
descrita pela personagem Matias: “[...] de braço dado com Cipriano vi a
‘encomenda’ chegando ao barracão, com chapéu de plumas, deixando pelo caminho
forte odor de perfume francês, falando com um sotaque que me deu a impressão de
ser eslavo”.[93]
A
chegada da mulher, para o seringalista, causa impacto, uma vez que no seu
seringal a presença de mulheres é proibida pelo regulamento: “[...] a
seringueirada toda a ‘imaginava’. À sua maneira, é claro. Com a imaginação
superaquecida pela influência da prolongada abstinência carnal, que ia aos
poucos temperando a realidade. Transformando a velha meretriz aposentada num
verdadeiro mito. Quase uma deusa, inspiradora de sonhos lascivos e de excessos
masturbatórios que confessavam sem a menor cerimônia”.[94] O
privilégio da mulher que a personagem do seringalista pode auferir não fica sem
castigo no romance, pois mesmo possibilitando luxo e conforto à prostituta
negociada pelo regatão, tornando-a a ‘senhora’ do seringal, Cipriano é traído
por ela e por seu empregado de confiança, que fogem juntos. A mulher mais uma
vez acarreta um desfecho trágico na ficção da borracha: a personagem do
seringalista vinga-se da traição com um duplo assassinato; é presa, condenada e
ainda sofre a ruína econômica em virtude da baixa de preço da borracha.
Dentre
as obras referidas nesse capítulo, Deserdados
é aquela que mais se concentra no aspecto da escassez e ausência da mulher no
ambiente do seringal. Nos seus quinze capítulos, o livro aborda várias
circunstâncias reveladoras tanto dos conflitos causados pela presença limitada
da mulher quanto das alternativas extremas de que lançam mão os seringueiros
para verem seu instinto sexual saciado. O episódio da disputa de uma mulher por
dois seringueiros marca um dos momentos mais violentos da narrativa. Sugerindo
precisamente que o ser feminino é disputado como uma presa, esse capítulo da
luta feroz entre os seringueiros intitula-se “Caça á femea”. Como a luta não
tem vencedor, ficando os dois contendores mortos, a mulher é abandonada à sorte
e ensandece pela perda do companheiro e pela perda do que haviam construído
juntos, a barraca incendiada durante a luta. A disputa pela mulher, entretanto,
não termina com a cena sangrenta entre os dois seringueiros. Apesar de ela ter
um idade avançada e ter perdido a lucidez, os seringueiros ainda a vêem como um
possível usufruto:
Outro
seringueiro famelico chamou de lado o patrão e em segredo lhe propôz a posse da
virago imbecilizada, sob a recompensa de pagar-lhe a elle as dividas por
ventura contraídas “por ambos” os freguezes assassinados. Mas quando em sua
companhía, chegou ao local trajico, já outro lascivo havía tirado partído da
irrezistencia da idiota e a conduzíra alhures, pelo labirinto da mata com o
rafeiro, para uma outra cena horripilante que a contijencia do viver alí
sujería e punha em pratica: a conjugação nojenta de uma carcaça repulsíva de
mais de meio século de uzo com a seivoza compleição de um mancedo de vínte e
poucos anos nos estertores morbidos da brutalidade antropoidesca da posse, sob
a ramaría umbrosa, num leito de folhas e de líchens...
Ordenado pelo
patrão sequiozo do saldo do melhor licitante, ía começar a emocionante caça á
femea cretína, que outro famulento levava para a solitude florestal, á
satisfação infrene dos instintos, á violência brutal da satiríaze...[95]
O
seringueiro, sentindo-se lesado por ter negociado uma “mercadoria” que lhe foi
roubada antes da posse, cobra do patrão a entrega. O diálogo é expressivo da
condição de objeto da mulher:
- Pensa Você
que eu devia pegar a mulher e botal-a em sua rêde, ou apenas consentir em V.
leval-a em paz para a sua barraca? Quando V. vem aquí comprar-me um paneiro de
farinha, não faço eu apenas abrír a
porta do armazem para deixar que V. o
tíre? Algum dia eu lhe metí nas mãos a saca de sal ou o cunhete de balas, ou
foi você que os foi escolher no depozito ?
E completou, sereno, com sua lojica:
- O cazo é
idêntico. Eu apenas lhe dei o direito de levar a mulher e a V. cabia ir
buscal-a, tal como a um paneiro de farinha do armazém...
- Entonce o
patrão me amostre o almazem ín quí a sua ‘mercadoría’ stá. P’lo menos eu tenho
quí vê sí a coiza istá bôa, num é?[96]
A
necessidade de possuir uma mulher em qualquer condição, demonstrada no episódio
de Deserdados, é ressaltada também em
outra obra do ciclo, No circo sem teto
da Amazônia: “Só a mulher é rara. Só
a mulher é difícil e por isso, linda ou horrenda, quente ou anestesiada,
voluptuosa ou fria, limpa ou nauseabunda, é ela a bússola que orienta a horda
dos exploradores da jângala.”[97]
Constituindo
aberrações, na maioria das vezes, essa relação difícil do seringueiro com a
mulher tem no extremo oposto da mulher velha, a menina em idade precoce para o
sexo que é possuída através do estupro ou do aliciamento. Obras como Deserdados, Dos ditos passados nos acercados
do Cassianã e Beiradão contêm
passagens representativas dessa situação. Na última, a descrição do amasiamento
de um seringueiro com três meninas demonstra que a escassez se transforma em
excesso: “José Arruda, lá do alto, desgraçou três pobrezinhas – uma de 9, a segunda de 10, outra de
12 anos. Viviam juntinhos, na mesma barraca. O delegado meteu a peia no bruto,
botou no tronco e conversou com as cunhãs. Pois todas defenderam José Arruda,
que lhes dava bóia e roupa. Pareciam cobrinhas assanhadas.”[98]
Enquanto
algumas narrativas apenas sugerem, num “causo” ou noutro contado pelos
seringueiros, o bestialismo como a forma de superar a ausência da mulher, Deserdados ostenta num capítulo
intitulado “Aos azares da sorte” uma descrição da prática de sexo com animal.
Na vida do seringal, essa prática não se torna exclusiva de seringueiros, mas
também de outros homens envolvidos nas diversas atividades paralelas à
extração, que também compartilham do regime recluso. Mateus, um comboieiro, é a
personagem protagonizadora do capítulo de Deserdados
que se sente obrigada a se satisfazer sexualmente com fêmeas não humanas.
Pressionado pela falta de mulher, ele passa a observar libidinosamente as
fêmeas dos bichos e a desejá-las:
De uma feita
surpreendera os amores danozamente lubricos de duas onças e escitara-se ao
estremo de alvejar a femea para tel-a na posse, numa impropria substituição do
felíno; de outra uzara uma anta abatida, em espasmos baixíssimos de necrofilo
ultra-degenerado. Os macacos que se amavam em digressões pela ramaría, ou os
jabotís que se faziam dos mais tonantes
genezístas do orbe biolojico, levaram-no aos paroxísmos da sedução sexual: e
como lhe faltasse humana companheira, Mateus vía–se na continjencia ingrata de
tomar uma inferior das garras do macho, á bala, ou de uzal-a ao limiar da morte
com a veemencia dejenerativa dos enfuriados.[99]
O
comboieiro encontra na mula “Faceira” a satisfação do desejo que o punha em
constante inquietude, mas após servir-se da mula com constância, nota que ela
se habituara a esperá-lo sempre no mesmo lugar e a indicar com gestos
característicos o desejo de que ele consumasse a ação. Essa atitude do animal
passa a enojá-lo e ele se dá conta de que tornara-se “[...] apenas um sordido
instrumento para alimarías insatisfeitas..”[100]
Da repulsa, ele passa ao ódio e executa uma vingança sádica contra a mula:
A “Faceira”
fez-lhe de pezadelo-mór. E ele , por vingança, certo dia deparando na estrada
um pedaço de muiratínga, desse arbusto singular cujos ramos, em secando, se
bipartem em cem numero de falus, perfeitos com a morfolojía masculina, meteu um
deles sob o braço e esperou sofrego, a parada da Faceira no ponto costumeiro.
Era mais uma baixeza de sua psiquoze. Ensebou o troço imitativo. Esse admirável
cazo de simbioze vegetal, e incrustou com bruteza na estrutura antes uzada com
delícia...[101]
No
livro de contos O tocador de charamela, o aspecto da
ausência da mulher faz-se mais uma vez presente através da tríade
“Três histórias da terra”. Os contos deixam de lado o aspecto grotesco
explorado em Os deserdados e enfocam
a solidão do homem no seringal de uma forma pungente em “Tio Antunes”, o velho
que espera indefinidamente a chegada de uma mulher e finda por enlouquecer. Por
outro lado, há também uma abordagem bem humorada em “Zeca-Dama”, um seringueiro
que ameniza a ausência de mulheres nas festas, dançando com outros seringueiros
e em “João Carioca: mandão e famão – Juiz de Paz”, o seringalista que resolve o
problema da falta de mulheres em seus seringais, trazendo prostitutas do Ceará
e casando-as com seus seringueiros.[102]
Se,
por um lado, a ênfase dada pela ficção nos comportamentos sexuais aberrativos
tem como principal motivo a solidão dos seringueiros e de outros trabalhadores
do seringal, solidão que os leva, segundo a narrativa de Adaucto Fernandes, em Arapixi, a se animalizarem: “[...] São
homens que não vivem. Vegetam segregados da sociedade que os brutaliza e
explora. São sêres humanos no aspecto e alimárias estranhas na mata [...][103],
algumas obras demonstram também que os desregramentos sexuais não são
exclusivos dos seringueiros que não têm contato com mulheres e que vivem
isolados na mata. Nessas obras, os coronéis seringalistas, mesmo casados e
podendo também se afastar dos seringais para se divertirem com prostitutas nas
capitais, cometem violações contra enteadas e sobrinhas. Diferentemente do
castigo sofrido pelo seringueiro amasiado com três meninas, apresentado em Beiradão, esses seringalistas não sofrem
qualquer punição ou advertência da justiça e continuam a exercer autoridade
para determinar a conduta correta de seus subordinados.
Na
constância da abordagem do ser feminino como coisa rara, escassa ou inexistente
no seringal, resulta um apagamento, na maioria das obras do ciclo, da personagem
feminina enquanto realizadora de uma ação ficcional efetiva. As personagens
femininas não possuem individualidade nas narrativas, não têm pensamento ou
atos descritos que lhes possam dar um caráter próprio. Aparecem como
mercadoria, como objeto de disputa tal como a cabocla Maiby, do conto homônimo,
ou a prostituta Conchita, de Coronel de
barranco. Quando esposas de seringalistas, recebem atenção na narrativa em
virtude do desejo que despertam nos homens premidos pelo clamor sexual, como a
personagem-esposa do guarda-livros, de A
selva, cobiçada pela personagem Alberto nos momentos de volúpia causados
pela abstinência prolongada.
A
exceção à falta de delineamento da personagem feminina faz-se em Terra de ninguém, em que a personagem Nadesca, filha do seringalista,
constitui o oposto das personagens das demais narrativas, mostrando-se
voluntariosa e dona de suas ações. Para delinear essa personagem que possui
independência, o narrador comenta que ela falou-lhe “[...] do desejo que
alimentava de viver livre, como as águas, barulhentas da corredeira; como os
pássaros alígeros que voavam lá em cima; como as corças selvagens que não
encontravam limites nem perspectivas marcadas”. [104]
Nadesca não apenas tem voz, contesta o sistema de trabalho do seringal do pai e
a truculência das ações deste, como participa, no final do romance, da revolta
dos seringueiros. De ares revolucionários a ponto de se tornar uma caricatura,
essa personagem é uma das responsáveis pela acusação que se faz a Francisco
Galvão de criar um romance com situações e personagens inverossímeis.[105]
3
A DIVERSIFICAÇÃO DA
ABORDAGEM FICCIONAL DO CICLO DA BORRACHA NAS OBRAS A selva, Beiradão e O amante das amazonas.
Conforme
demonstramos, as obras que abordaram o “ciclo da borracha” retomaram, em sua
maioria, os aspectos em torno do comportamento truculento dos seringalistas e
as conseqüências da ausência da mulher no seringal. Sobre a constância do
primeiro aspecto, Mário Ypiranga Monteiro destacou a insistência dos autores em
transformar o nordestino no que denomina “arquétipo do patrão seringalista mau
e ganancioso, analfabeto e bronco.”[106]
É preciso
distinguir, todavia, o papel tirânico do seringalista reiterado na ficção e a
presença do explorador como elemento verossímil no contexto em que se
desenvolveu o ciclo econômico de exploração do látex. Tornamos a lembrar que a
existência do seringalista como explorador origina-se em virtude da estrutura
implantada nos seringais, na qual ele constitui o elemento detentor dos meios
de produção que efetivamente explora a riqueza natural através do trabalho do
extrator.
De modo geral,
a ficção sobre o ciclo hipertrofiou a presença do explorador, forjando um tipo
com características que muitas vezes excediam as que a realidade oferecia. A
abordagem sobre o ciclo limitou-se a forjar esse decalque do explorador,
apresentando pouca variação.
A
diversificação que a partir desse capítulo apontaremos na abordagem das obras
ficcionais tem como base o aprofundamento e a renovação da temática e da
estrutura narrativa. Antes, porém, de nos determos nas três obras sobre as
quais empreenderemos a análise – A selva,
Beiradão e O amante das amazonas – é necessário mencionar obras que compõem o
ciclo de ficções da borracha cujo conteúdo e cuja estrutura narrativa
apresentam alguma diversificação na abordagem do tema.
O perfil quase
unânime do seringalista cruel sofre uma alteração em Dos ditos passados nos
acercados do Cassianã, romance de Paulo Jacob, publicado em 1969. Anastácio
Trajano, a personagem do seringalista, foge em mais de um ponto ao tipo
inescrupuloso, determinado em outras obras, pois cumpre as obrigações
patronais, inclusive o pagamento do saldo aos seringueiros, não os submete aos
castigos físicos usuais e não se nega a ajudá-los quando necessitam de seus
favores. O romancista não deixa, todavia, de expor o caráter do seringalista
perverso em outra personagem do romance, Macário Gomes, antítese de Anastácio
Trajano. Macário , através de sua índole sórdida, é que, na verdade, domina a
ação da narrativa da metade até o final. O romance não promove uma oposição
duradoura entre as personagens que representam o bom e o mau seringalista.
Saindo Anastácio Trajano de cena, o vil Macário Gomes predomina, à semelhança
dos tipos característicos de outras obras. Em virtude disso, a presença no
romance do seringalista que foge ao tipo corriqueiro não leva a uma completa
diversificação, apaga-se como se tivesse apenas o objetivo de apresentar um
exemplo de bom seringalista. Explicita-se que o romancista não tencionava levar
a cabo uma luta do bem contra o mal, o desaparecimento da personagem Anastácio
Trajano não possibilita que essa luta seja o desfecho do romance. O fim do
seringalista mau é selado por seus próprios capangas, que se cansam de seus
atos perversos e o assassinam.
É também numa
outra obra de Paulo Jacob, O gaiola
tirante rumo ao rio da borracha que a abordagem do ciclo se afasta do usual binômio
margem/centro para se localizar inteiramente a bordo de um barco, o gaiola “Rio
Curuçá”. Aí se movem os tipos peculiares ao tema, sendo que a personagem do
comandante do barco, secundária em outras obras, aparece com maior destaque.
Não constituindo necessariamente uma obra que apresente aprofundamento do tema,
é uma demonstração de criatividade do romancista que cria uma imagem do gaiola
representando o próprio ciclo e faz coincidir a ruína e o desmantelamento do
barco com o declínio da exploração da borracha amazônica.
Antes das
obras de Paulo Jacob, o romance Terra de
ninguém, publicado em 1934 por Francisco Galvão, trouxe algumas inovações,
apesar de não se contarem até então um número muito expressivo de obras em que
se possa identificar uma constância de abordagem. Já haviam, porém, sido
publicados O paroara (1899), Inferno verde (1908), Deserdados (1921) e A selva (1930).
Primeiramente,
cabe destacar a contenção narrativa do romance que, divergindo das obras que o
antecederam, não se derrama em descrições, nem se excede no preciosismo dos
vocábulos ou no rebuscamento dos períodos. Essa contenção revela que o autor
buscava inovar em sua narrativa, atestando sua filiação ao ideário modernista.[107]
Márcio Souza, no comentário sucinto que fez sobre a obra, tratou-a como uma
“verdadeira floração estranha no interior de uma ficção comportada”[108]
e apontou a sua inconsistência pela inverossimilhança ideológica. Djalma
Batista, no ensaio “Letras da Amazônia”,[109]
publicado em 1938, já apontara o livro como inverossímil sem maiores
comentários. Para Souza, a falta de verossimilhança consiste em personagens
membros de uma classe abastada defenderem ideais contrários a essa classe.
Nessa observação, o autor talvez não leve em conta que não é totalmente
improvável um membro de uma classe abastada se indignar com as injustiças sociais
promovidas por essa classe. Acreditamos que a inverossimilhança em Terra de ninguém resida mais justamente
em outro ponto. O de o autor tentar produzir um romance de tese sem o devido
adensamento. Buscando veicular idéias feministas e socialistas através de suas
personagens, o romance soçobra por carência de desenvolvimento da matéria
romanesca e de consistência das personagens. Nadesca, uma das protagonistas, é
incoerente não por ser membro de uma classe abastada e ter ideais de justiça
social, mas porque se mantém usufruindo das benesses que o pai lhe oferece
praticamente sem conflito até o final do romance, quando enfim assume uma
atitude de revolta. Até então, ela que propala idéias socialistas, se comporta
como uma turista passeando pelo mundo do seringal, notando seus problemas sem
se envolver. Manifesta querer conhecer a forma simples de vida dos
seringueiros, suas dificuldades, mantendo-se na posição de abastança. Não há,
no romance, verdadeiro conflito de Nadesca que a revele como uma personagem
complexa. Feitas essas considerações, não se pode negar ao romance de Galvão a
tentativa inusitada de trazer a mulher para a cena central da narrativa do
seringal na qual ela sempre figura como um objeto de disputa parcamente
delineado. Terra de ninguém, sendo um
romance publicado entre as décadas de 1930 e 1940, traz a marca do idealismo
revolucionário de um período da história brasileira.[110] O subtítulo do romance – romance social do
Amazonas – e o seu conteúdo que inclui o desfecho com uma revolta dos seringueiros,
levaram à consideração de que ele seria pioneiro na criação de uma prosa
amazonense de cunho social. Consideração que não é de fato justa, se se levar
em conta que em Inferno verde, obra
de Alberto Rangel publicada em 1908,
a temática social já é tratada no conto “Obstinação” que
enfoca a revolta interiorizada de uma personagem caboclo o qual pratica o
suicídio enterrando-se vivo na terra que lhe é tomada por um latifundiário,
descrito como um apuiseiro social.[111]
A utopia de
fundar uma sociedade mais justa alimentada nas décadas de 1930 e 1940 sob o
influxo das idéias socialistas aparece delineada em Terra de ninguém e em outras obras do período. Amazônia que ninguém sabe,
romance[112] de
Abguar Bastos publicado em 1932 e depois rebatizado na segunda edição, em 1934,
de Terra de Icamiaba projeta na
personagem Bepe um herói socialista amazônico. Bepe sintetiza a busca de um
líder nacional autêntico. A criação de uma nova arte nacional através do
repúdio à velha arte da cópia do modelo europeu que Francisco Galvão propõe, no
“Manifesto da beleza”, é igualmente encampada por Bastos em passagem que a
narrativa de Terra de Icamiaba dá
lugar ao manifesto[113].
Apesar das afinidades nas concepções estéticas entre Abguar Bastos e Francisco
Galvão e de suas obras terem sido escritas em períodos próximos,
assemelhando-se até no paralelismo dos títulos, o primeiro escreve uma obra
diversa da temática usual da borracha. Ainda que o narrador profira críticas
diretas às falhas do sistema extrativista da borracha: “O leite da seringueira,
brilhante e pastoso, foi apenas um relâmpago de grandeza. Ceilão fez
concorrência e matou a fortuna dos seringais”[114]
não se detém na pintura do seringal, de seus tipos e de seus conflitos.
Diferentemente de outras obras, esta não
realiza a estrutura convencional do romance realista, sua construção
aproxima-se do discurso poético. Sem um desenvolvimento preciso de enredo,
atrai mais pelas imagens do que por uma trama.[115]
Neste
trabalho, optamos por uma análise detalhada das obras A selva, Beiradão e O amante das amazonas por serem essas
três obras as mais representativas do aprofundamento e diversificação do tema
do “ciclo da borracha” dentro de uma extensa trajetória ficcional. Para efeito
de estudo, dividimos essa trajetória em três fases. A primeira compreendendo as
publicações de O paroara, em 1899,
até A selva, em 1930; a segunda, a
partir da publicação de Terra de Icamiaba,
em 1934, até Coronel de barranco, em
1970; e a terceira, a partir da publicação de O amante das amazonas, em 1992. Nosso critério de divisão dessas
fases orienta-se não apenas por uma periodicidade temporal. Consideramos o
conteúdo das obras e a sua forma de abordagem. Na primeira fase, o tema é
abordado dentro de uma seqüência epigônica
desencadeada por Euclides da Cunha com
À margem da história, obra em que denuncia a espoliação sofrida pelo
seringueiro. Apesar de ter sido publicada em 1909, sendo, portanto, posterior a
Inferno verde (1908), de Alberto
Rangel, é possível perceber a identificação de estilo e de idéias entre os
autores e considerar Rangel seguidor de Cunha.[116]
Cunha e Rangel
inspiraram, por sua vez, Carlos de Vasconcelos, em Deserdados (1921) que copia-lhes a opulência da linguagem. Desta
tendência epigônica, fica à margem Ferreira de Castro, autor português que
abordou o tema motivado por documentar sua própria experiência no seringal.
As obras da
segunda fase, ao contrário das da primeira, não se delineiam pela continuidade
de um estilo. Mesmo algumas delas possuindo uma dose de pensamento social
reformador, como Terra de Icamiaba, Terra de ninguém, Um punhado de vidas, apresentam autores com estilos diversos. Nessa
fase, portanto, as obras representam mais uma experiência de cada autor do que
a continuidade da tradição de um estilo. A exceção ocorre em No circo sem teto da Amazônia (1955) que
ainda traz o descritivismo e a linguagem carregada à semelhança dos estilos de
Euclides da Cunha e de Alberto Rangel.
Incluímos na
terceira fase apenas a obra O amante das
amazonas, omitindo as abordagens episódicas do tema em parte dos romances Terra firme e Regime das águas e nos contos incluídos em O tocador de charamela por entendermos que o romance Coronel de barranco é um marco que
baliza a segunda fase e que a abordagem do tema nessas obras posteriores é
menos uma continuidade do ciclo ficcional do que recorrência isolada. Apontamos
a terceira fase em O amante das amazonas
por essa obra atestar um novo estágio de abordagem do tema do ciclo em que
tanto o tema se renova quanto a estrutura narrativa sofre uma acentuada
reorganização.
A selva, Beiradão e O amante das
amazonas, abrangendo as três fases, expressam diferenciais de abordagem em
cada uma delas. As três obras são representativas de três percepções sobre o
ciclo, a do escritor estrangeiro, do escritor político e do escritor estudioso
da literatura. Nessas três percepções, um ponto em comum: a experiência, direta
e indireta, do seringal. Direta, em Ferreira de Castro e Álvaro Maia, que o
conheceram pessoalmente. Indireta, em Rogel Samuel que o reconstitui pelo caminho da
memória do avô, um rico comerciante da borracha. Passamos a analisar as três
percepções e os consecutivos delineamentos que deram às obras.
A selva:
a visão de um imigrante português sobre o ciclo da borracha
Ao
escolher a Amazônia como espaço de representação de seu romance, Ferreira de
Castro não o fez como um absentista[117],
baseou-se na própria vivência de quatro anos num seringal localizado no rio
Madeira que, coincidentemente com o topônimo dado ao local na ficção, também se
chamava Paraíso. No Pórtico de abertura do romance, o autor declara: “Eu devia
este livro a essa majestade verde, soberba e enigmática que é a selva
amazônica, pelo muito que nela sofri durante os primeiros anos da minha
adolescência e pela coragem que me deu para o resto da vida [...]”[118].
A edição comemorativa dos vinte e cinco anos de publicação da obra, em 1955,
traz em “Pequena história de A selva” uma configuração maior do tom
confessional que o romancista dá à criação do romance. Nesse texto, que é uma
contribuição ao estudo da formação de um escritor, Ferreira de Castro expõe o
quanto o contato e a experiência com a natureza amazônica impressionaram o seu
espírito, impelindo-o a transformar em matéria ficcional todas as sensações de
um mundo que não conseguia esquecer. Ao mesmo tempo, revela também um temor de
registrar essas sensações e assim revivê-las:
[...] durante
muitos anos tive medo de revivê-la literariamente. Medo de reabrir, com a pena,
as minhas feridas, como os homens lá avivavam, com pequenos machados, no
mistério da grande floresta, as chagas das seringueiras. Um medo frio, que
ainda hoje sinto, quando amigos e até desconhecidos me incitam a escrever
memórias, uma larga confissão, uma existência exposta ao sol, que eu próprio
julgo seria útil às juventudes que se encontrassem em situações idênticas às
que vivi.[119]
Não
obstante a recriação literária do ambiente amazônico significasse para o
romancista rememorar uma experiência traumática do seu segundo decênio de vida,
ele tinha convicção de que essa recriação só poderia se realizar a partir de um
compromisso de fidelidade:
As selvas,
fechassem elas o seu mistério nas vastidões sul-americanas ou verdejassem, mais
permeáveis à luz solar, na Ásia, na África, na Oceania, representavam desde há
muito, um assunto maculado literariamente. Maculado por milhentos romances de
aventuras, onde a imaginação dos seus autores, para lisonjear os leitores
fáceis, se permitira todas as inverossimilhanças, todas as incongruências.
Eu pretendera
fugir à regra. Pretendera realizar um livro de argumento muito simples, tão
possível, tão natural que não se sentisse mesmo o argumento. Um livro monótono
porventura, se não pudesse dar-lhe colorido e vibração, mas honesto, onde o
próprio cenário em vez de nos impelir para o sonho aventuroso, nos induzisse ao
exame e, mais do que um grande pano de fundo, fosse uma personagem de primeiro
plano, viva e contraditória ao mesmo tempo admirável e temível, como são as de
carne, sangue e osso. A selva, os homens que nela viviam, o seu drama
interdependente, uma plena autenticidade e nenhum efeito fácil – era essa minha
ambição.[120]
A
verossimilhança que procurou manter em relação a um mundo que fez parte de sua
experiência de vida deu a Ferreira de Castro a possibilidade de ser defendido
quando foi acusado de detratar a realidade amazônica.[121]
O
cosmopolitismo de Ferreira de Castro, as viagens que empreendeu a começar pela
saída de Portugal ainda menino, a chegada a Belém do Pará e depois a partida
para o rio Madeira, a viagem de volta ao mundo na idade adulta deram-lhe a
possibilidade de conhecer diferentes países. Daí a sua obra apresentar
expressões culturais tão diversas: do Brasil, e nele é preciso abrir um
parêntese para a Amazônia, da Espanha, da França e de Portugal, sua terra de
nascimento. Podemos deduzir que a experiência de viajante foi fundamental na
construção da obra do romancista. Jaime Brasil, biógrafo do romancista, enfatiza que “[...] sem a ida ao Brasil, na
idade e nas circunstâncias em que o fez, Ferreira de Castro, embora viesse a
ser um grande escritor, não teria escrito A
selva [...].”[122]
Para Magalhães Júnior, A selva é um
romance brasileiro pelo seu tema.[123]
Ferreira de Castro é um autor que desafia as fronteiras literárias e enseja a
discussão que envolve nacionalidade e tema na literatura.[124]
A
nomeação do romance como amazônico parte do fato de que o ambiente em que se
passa e a sua temática estão voltados para essa região, mas um outro fato que
também deve ser levado em consideração é que esse romance tem um criador e um
protagonista de nacionalidade portuguesa. Nesse ponto, a experiência de vida e
a criação estão ligadas. Se, por um lado, não há impossibilidade de um
romancista escrever um livro sobre um mundo que não conheceu pessoalmente, por
outro, há também uma necessidade que o compele a escrever sobre um mundo que
faz parte de sua experiência. Em A selva,
a particularidade da experiência se confirma não somente pelas próprias
palavras do autor como também porque, diferentemente do que ocorre em outro
romance de sua autoria, A curva da
estrada, em que a ação se passa na Espanha e é protagonizada por personagem
espanhol, Ferreira de Castro criou para o romance que se passa em ambiente
amazônico um protagonista português. A intenção do autor, portanto, era enfocar
o ambiente amazônico pelo prisma de um imigrante. Convém destacar que o romance
é documental no sentido de que o autor registrou aquilo que de fato observou ,
dando azo à criação do romance, não é, porém, um romance autobiográfico, pois
contém mais distanciamento do que aproximação entre autor e protagonista. Um
comentário do autor é esclarecedor a esse respeito: “Se é verdade que nesse
romance a intriga tantas vezes se afasta da minha vida, não é menos verdadeiro
também que a ficção se tece sobre um fundo vivido dramaticamente pelo seu
autor[...]”[125]. Como
Alberto, o protagonista, Ferreira de Castro foi enviado para o seringal. As
condições que motivaram as viagens de ambos coincidem em alguns pontos, mas
também se diferenciam. Foram enviados ao seringal porque tornaram-se
dispendiosos, Alberto para o tio, Ferreira de Castro para o seu protetor.
Alberto era um homem com convicções formadas, participara em Portugal da
revolta monarquista. Ferreira de Castro, um menino pobre com intenção de
escrever textos literários. Quando se trata da personalidade, nota-se uma
franca oposição. Ferreira de Castro foi um humanista que não se filiou a
facções políticas [126] Na ficção, Alberto é um monarquista que como
tal defende os privilégios dessa classe, despreza os humildes. Na terceira classe do barco onde
vem a se encontrar pelas contingências da sorte a caminho do seringal, não quer
se misturar aos nordestinos porque considera a natureza destes inferior.
Despreza a democracia e a igualdade humana. Após um longo caminho de
humilhações, sofrimento e resignação é que Alberto passa a ver a vida e os
seres humanos de modo diferente, abandonando, no final da narrativa, os
princípios monarquistas. A evolução por que passa o protagonista foi preferida
pelo romancista que declara ter abandonado os planos de criar uma personagem
estática: “[...] A personagem assim apresentada tinha idéias já formadas sobre
a injusta organização do mundo em que vivia e, naturalmente, veria o mundo em
que ia viver com uma atitude moral preconcebida, com um espírito apenas de
confirmação, o que diminuiria, para quem não aceitasse as cores do seu
horizonte, o sentimento de verdade naquilo mesmo que era verdadeiro. Preferi,
portanto, uma figura evolutiva [...][127].
O
enredo de A selva começa focalizando
o imigrante português Alberto, desempregado, vivendo às custas do tio em Belém. A situação que
envolve o desconforto do protagonista por saber-se dispendioso e incômodo não
demora a se alterar, pois o tio logo lhe expõe a oportunidade que se apresenta
de ele partir para o seringal em busca de trabalho. Sem condições de recusar a
quase imposição, Alberto se resigna, sabendo de antemão que se punha numa
situação de risco, destacando-se para uma região desconhecida e perigosa. O tio, cujo único objetivo é convencê-lo,
alardeia uma chance promissora de fortuna:
- Para o
Madeira, disse o tio?
- É o seringal
chama-se o Paraíso.
- Rio
Madeira... Rio Madeira... Não é lá que há muitas febres?
- No
Madeira...
- É; em todos
os seringais há muitas febres... - interrompeu-o, finalmente, Alberto.
[..]
- Que é que eu
iria fazer lá?
- O que iria
fazer?... Não sei. Cortar seringa, talvez não, porque é duro. Mas os seringais
têm sempre um escritório, um armazém... Vamos a ver. Vamos a ver o que se
arranja. E não te aborreças, pois aquilo, para quem tem saúde e juízo, são
terras onde se enriquece em pouco tempo [...].[128]
As
considerações do narrador sobre o futuro que se afigura temerário para Alberto
expõem o círculo que se constitui em torno da extração do látex: empregados de
comércio, retirantes, oportunistas, buscando uma chance de fazer fortuna. Uma
passagem do romance ilustra como se dá a riqueza de alguns e a miséria de
outros:
Fora assim que
o tio enriquecera e tinha já duas quintas em Portugal; fora assim que pobretões
sem eira nem beira se transformaram, dum instante para o outro, em donos de
‘casas aviadoras’ tão poderosas que sustentavam no dédalo fluvial grande frota
de ‘gaiolas’. Aos que desbastavam a saúde e a vida no centro da floresta,
vendiam por cinqüenta aquilo que custava dez e compravam-lhes por dez o que
valia cinqüenta. E quando o ingênuo conseguia triunfar de toda essa espoliação
e descia, sorridente e perturbado pelo contacto com o mundo urbano, a caminho
da terra nativa, nos confins do maranhão ou do Ceará, lá estava Macedo com os
colegas e as suas hospedarias, que o haviam explorado na subida e agora o
exploravam muito mais ainda, com uma intérmina série de ardis, que ia da
‘vermelinha’ onde se começava por ganhar muito e se acabava por perder tudo,
até, o latrocínio, executado sob a proteção do álcool.[129]
Alberto
embarca rumo ao seringal e, ao se encontrar na terceira classe do “Justo
Chermont”, depara-se com uma realidade que custa a aceitar. O convés úmido e
escorregadio exala mal cheiro; os seres humanos que ali se encontram
aglomeram-se numa promiscuidade de animais. Ele se põe intranqüilo com a
situação mas tem esperanças de receber tratamento distinto. Sabe-se posto ao
nível dos outros pelas contingências mas embasado em seus princípios
monarquistas, acredita-se moralmente superior:
Magoava-o a
facilidade com que outros recrutados dormiam tranqüilamente um sono que era,
para o egoísmo dele, quase uma afronta.
E sorria,
depreciativamente, ao pensar no apostolado da democracia, nos defensores da
igualdade humana que ele combatera e o haviam atirado para o exílio.
‘Retóricos, retóricos perniciosos! Queria vê-los ali, ao seu lado, para lhes
perguntar se era com aquela humanidade primária que pretendiam restaurar o
Mundo [...] Ele e os seus, declarados inimigos da igualdade, defensores de
elites, eram bem mais amigos dessa pobre gente que os outros, os que a
ludibriavam com a idéia duma fraternidade e dum bem-estar que não lhe davam nem
lhe podiam dar. Só as seleções e as castas, com direitos hereditários, tesouros
das famílias privilegiadas, longamente evoluídas, poderiam levar o povo a um
mais alto estádio. Mas tudo isso só se faria com autoridade inquebrantável – um
rei e os seus ministros a mandarem e todos os demais a obedecer [...][130]
As
esperanças de Alberto se desvanecem, não lhe é dado tratamento especial a bordo
do vapor, sua última ação de recusa a aceitar o estado de subserviência igual
ao dos outros recrutados é contrariar as ordens de Balbino, o agenciador, desembarcando em Manaus e recorrendo a uma
tentativa de escapar ao seringal. Assim, resolve fazer um pedido de emprego a
um rico comerciante, mas o emprego é-lhe negado e a sua humilhação se acentua
com a constatação de que o distinto comendador a quem recorre, um conterrâneo
no qual supunha encontrar solidariedade, haja vista também ter passado por
dificuldade antes de enriquecer, trata-o como um pedinte, dando-lhe uma esmola
a fim de se livrar de sua presença incômoda.
O
aprendizado de Alberto rumo à mudança de suas convicções políticas terá
prosseguimento no seringal, onde, como brabo, primeiramente será submetido ao
trabalho árduo de extração do látex, trabalho que não suportaria não fosse a
ajuda de um seringueiro experiente, Firmino, que torna menos penosa a sua lida
diária nas estradas. Firmino passa a ser mais que um seringueiro manso, guia de
um seringueiro brabo, demonstra afeição de amigo por Alberto, poupando-o ou
defendendo-o dos ataques de Balbino e Caetano, os fiscais do trabalho de
extração que não acreditam na capacidade de Alberto, por ser estrangeiro, e
procuram desmoralizá-lo numa competição que travam entre si para ganhar a
confiança e a preferência do patrão.
Isolado
na monotonia da selva, oprimido pelo mundo verde, resta a Alberto apenas a
certeza de ser impotente para mudar sua situação. A perspectiva da sucessão dos
anos apresenta-se, então, como uma sentença que ele terá de cumprir tal qual os
outros seringueiros. Um lance de sorte, porém, altera o que lhe parecia
irremediável. O empregado do barracão que faz o despacho das mercadorias é
remanejado para o trabalho de fiscalização das estradas e Alberto é chamado
para substituí-lo. Com isso, o duro aprendizado interrompe-se. A ida para o
barracão parece conferir-lhe uma distinção que lhe era atribuída inclusive pelo
amigo Firmino: “ – Eu tenho pena de seu Alberto. O seringal não é para um homem
de sua pele [...]”[131].
A
experiência na estrada do seringal, a impressão assombrosa que lhe causa a
selva, o perigo dos ataques dos índios, que o punha sempre em estado de pavor,
o trabalho para o qual não possuía habilidade, a humilhação que lhe haviam
feito passar os empregados do seringal e também o patrão seringalista ao
apontá-lo como inepto deram a Alberto uma nova dimensão da vida e também dos
sofrimentos alheios. Ao se despedir de Firmino, a caminho de seu novo trabalho
no barracão, ele já não demonstra a indiferença e o desprezo pela condição do
outro que antes considerava de humanidade inferior. O sofrimento do outro
compunge-o:
Alberto
estremeceu. Sim, era verdade, dali em diante Firmino seria a única existência
humana na clareira de Todos-os-Santos noites e dias a sós consigo, sepultado na
solidão, sem ninguém que o distraísse, sem ninguém partilhando a mesma vida, os
mesmos perigos, sozinho e remoendo sempre os mesmos pensamentos, em condena e
persistência de doido varrido. Teria de falar alto para ele somente se quisesse
certificar-se de que não perdera a voz; e, por companheira, possuiria apenas a
selva inquietante, que se debruçava quase sobre a barraca, a atestar o seu
domínio. A selva e a possibilidade de os índios o surpreenderem isolado.[132]
Ainda
restará, mesmo após a dura experiência na estrada de corte, parte do orgulho
monarquista refletido no desejo de receber tratamento especial, de ser
reconhecido como alguém que possui estudo e não como um bronco. Por isso,
Alberto se sente satisfeito em aprender o trabalho contábil, mostrando-se
lépido e diligente ao exercer uma atividade que não lhe parece humilhante, mas
se indispõe intimamente com o trabalho de lavar e encher as garrafas de bebidas
para o patrão, sob as ordens de Binda, a quem substitui. Ao ser chamado pelo
cozinheiro para almoçar na cozinha e perceber que não lhe cabe lugar na mesa
principal, onde comem o patrão seringalista, o guarda-livros e a sua esposa,
reacende-lhe o sentimento de revolta por sentir-se desconsiderado tal como na
terceira classe do barco que o levara para ali. Tivera que se contentar com o
mesmo tratamento dado aos retirantes porque a primeira classe lhe era
interdita. Agora, corroía-se e perdia a fome ao pensar no privilégio que também
lhe era negado: “A mesa, que adivinhava lá dentro, com toalha branca, cristais
e vinhos, enquanto ele comia na cozinha, ainda de mãos engelhadas pela água
onde lavava as garrafas, provocava-lhe nova humilhação.[133]
A
situação de se ver como inferior leva-o a pensar na criada de sua família, em
Portugal, fazendo-o refletir no tratamento que a família lhe dispensava como um
“ser à parte”. Dá-se conta de que ele próprio assim a considerava e sente-se
incomodado. Recobra, porém, o orgulho quando percebe que seu sofrimento e
resignação lhe renderam uma “humildade postiça” que diante da dignidade
recuperada não tem razão de ser: “[...] À medida que crescia no lugar ia
regressando a si mesmo, de novo sentindo-se merecedor de tudo quanto de
agradável lhe faziam: da deferência do senhor Guerreiro, da recente bonomia de
Caetano e de Balbino – e de muito mais ainda.”[134]
É
também na mudança para o barracão que Alberto constata a sua fraqueza moral
perante os desejos carnais. Se no centro havia reprovado as alternativas dos
companheiros Agostinho e Firmino para satisfazer o desejo sexual,
considerando-as ignominiosas, no barracão, à margem, onde parecia estar menos
afastado da civilização tanto pelas condições de vida, quanto pela
possibilidade de um dia tomar um barco para deixar definitivamente o seringal,
sente, para roubar a tranqüilidade daquele pequeno conforto que conquistara, o
clamor sexual assomar incontrolavelmente, tomando conta da mente e do corpo. A
esposa do guarda-livros, dona Yayá, é a principal causadora de seus delírios
lúbricos. A obsessão de possuí-la leva-o a cogitar a morte do marido, mas uma
estima que passa a ter por este, reconhecendo o tratamento digno que lhe dá,
livra-o de cometer o ato criminoso quando tem a oportunidade de executá-lo
durante uma caçada da qual ambos participam.
Não
podendo ter dona Yayá, Alberto volta-se para a prática que mais considerara
aviltante quando dela tomara conhecimento ainda no centro:
Sentindo-se
ele próprio, com modos de autômato, dirigiu-se ao alpendre onde se guardavam os
laços. Palpou as cordas na obscuridade, com os dedos escolheu uma, e cá fora
ensaiou-a, abrindo-a e atirando-a várias vezes para um quadrúpede imaginário. E
de novo se fundiu na noite morna e cúmplice.
Quando voltou,
já se havia desvanecido no seu espírito a ígnea imagem de dona Yayá. Mas ele
cravava as unhas nas palmas das mãos, salivava constantemente e falava sozinho
como nunca lhe acontecera:
- Bolas!
Bolas! Não está certo!
Despiu-se logo
que chegou ao quarto, pôs a toalha no ombro e, atravessando o pequeno quintal,
colocou-se ao lado dos barris. Esgotou toda a água no banho longo e persistente
mas não conseguiu lavar-se da imensa repugnância que tinha por si mesmo.[135]
O
arrependimento não impede que ele seja tomado novamente pelo impulso de
satisfação, investindo contra nhá Vitória, uma das raras mulheres no seringal,
que presta o serviço de lavar sua roupa. A mulher ressente-se de seu ato
desrespeitoso, que não lhe considera sequer a idade avançada, e denuncia-o ao
guarda-livros Guerreiro. Esse vexame cai-lhe como um balde de água fria e
dá-lhe força para suportar a abstenção que, devido à carta da mãe, dando
notícia da anistia aos monarquistas revoltosos, promete ser temporária. A
possibilidade de deixar o seringal torna-se viável por fim com a ajuda em
dinheiro que a mãe lhe remete e com o saldo que o patrão considera quitado pelo
salário de balconista, abreviando em alguns meses a sua espera. O romance
caminha, então, para o seu desfecho, a trajetória de Alberto, constituída por
um processo de evolução de sua personalidade e transformação de seus princípios
chega ao fim.
A
transformação da consciência e a luta contra o instinto são os principais
motivos que perpassam a estadia de Alberto no centro. O processo da
transformação da consciência vai se dando de forma sutil, ora sua percepção
avança, ora recua:
Melhor
elucidado, via agora a situação dos ex-companheiros com maior amplitude crítica
do que quando moirejava no mesmo plano deles; uma situação que lhe ocorria
diariamente no próprio escritório onde seu âmago se encontrava. E nas horas de
solidão, em que a austeridade e a fantasia tanto gostam de alternar, distribuía
mentalmente justiça a todos eles, muitas vezes ofendendo durante esse devaneio,
as suas idéias autocráticas, sem da agressão que lhes fazia se dar conta. Se as
incoerências se denunciavam, quedava-se perplexo, todo confuso perante a nova
inclinação que sentia e lhe provocava amargo conflito em lugar de uma
consciência apaziguada. E então, buscando o equilíbrio que se lhe negava,
discorria que naquela natureza o homem pertencia menos a si próprio do que em
qualquer outra parte.[136]
Esse
estado de oscilação é freqüente na consciência de Alberto. Beneficiado pela
inesperada generosidade do patrão, ele se questiona sobre sua contradição
interior e a contradição como parte da própria relação entre os seres humanos,
decorrida de seus interesses e das posições que eles ocupam na sociedade:
[...] ‘Seria
ele quem mereceria mais a legítima restituição? E os outros? Os outros? Os que
haviam esgotado, no cativeiro da selva, muitos mais anos do que ele, toda a
mocidade, toda a vida, as ambições e as quimeras? E se ele não fosse branco, se
não tivesse a simpatia do senhor Guerreiro, se não se encontrasse apto para
desempenhar o cargo de Binda, que as circunstâncias lhe abriram subitamene? Se
em vez de estar ali, em contato com Juca, se em vez de jogar o solo com ele, de
comer ultimamente a mesma mesa, estivesse em Todos-os-Santos, simples seringueiro
como Firmino, como todos os outros que mantinham o seringal, que davam a vida
por uma riqueza que não aproveitavam, a dívida ser-lhe-ia também perdoada? Não, com certeza não! Era
certo que os homens são bons ou maus conforme a posição em que se encontram
perante nós e nós perante eles; e falso o indivíduo-bloco, o indivíduo sem
nenhuma contradição, sempre, sempre igual no seu procedimento’.[137]
A
rendição ao instinto e o reconhecimento da humanidade daqueles que não
compartilhavam dos privilégios monárquicos ou os defendiam são interdependentes
à medida que Alberto só reconhece essa humanidade após passar pela mesma
degradação por que passaram os outros. Como os outros seringueiros, ele é
dominado pelo instinto, sua natureza superior sucumbe da mesma forma que a
natureza dos outros por ele considerada inferior: “ ‘Sou um miserável e um
porcalhão como os outros’ ”[138]
Cabe
notar que a personagem atribui a vitória do instinto ao meio. Ante o meio
bárbaro, de nada adianta ao homem lutar, sua rendição é inevitável:
[...] Afirmava
a si mesmo que a responsabilidade não era dele, era do meio, era essencialmente
da Natureza, [...] Um instante, às suas faces, agora freqüentemente barbeadas
pelo filho de nhá Vitória, sobrepuseram-se as faces sujas de barba que ele e os
outros seringueiros traziam, desmoralizadamente, em Todos-os-Santos, durante a
semana inteira, por vezes durante semanas a fio. ‘E para quê o contrário, se
todos eles eram vítimas, se não havia ali presenças femininas a estimularem a
presunção dos homens, se não havia exemplos a seguir, para quê se lentamente a
selva impunha o regresso à negligência, o retrocesso dos civilizados, como se
estivesse empenhada em reincorporá-los na selvageria de onde se tinham
evadido?’[139]
É
a selva também a responsável pela truculência humana, o patrão se alia a ela
para executar sua obra de escravidão. Nesse ponto, a reflexão de Alberto nega
que a injustiça decorra da relação entre os seres humanos e a atribui ao papel
implacável do meio que degenera o humano, fazendo com que não se pertença nem
se domine.
O
processo de aprendizagem de Alberto, compreendendo a sua tomada de consciência
sobre o sistema de injustiça em que está calcado o funcionamento do seringal, a
reavaliação de suas convicções políticas, mostra-se concretizado quando o
principal motivo que o infelicita cessa. Podendo deixar o seringal e a selva,
ele se permite uma nova mentalidade. Não mais acredita que a evolução da
humanidade dependa das velhas castas e de seus direitos adquiridos, visualiza
que a vida humana só transporá o simples rastejar, se os “velhos processos”
forem abandonados e novas experiências tentadas: “[...]‘Não era, decerto, no
que estava feito, era no que estava por fazer, que o homem viria a encontrar,
talvez, o melhor de si próprio’ ”.[140]
No
diálogo que mantém com Juca Tristão, sente-se à vontade para admitir que não se
considera mais nem monárquico nem republicano e que almeja “justiça para
todos”. Faz um prognóstico que o patrão não entende, comunicando que sonha com
a evolução do ser humano mas que acredita ser a evolução lenta e a sede de
justiça mais profícua.
A
transformação de Alberto, compreendendo uma reflexão e uma prática não é
completa, seu individualismo se sobrepõe ao seu senso de justiça social. A
decisão de ajudar Firmino a fugir do seringal, fornecendo a lima para cortar as
correntes da canoa na qual ele pretende fugir revela-se um ato temerário, uma
vez que ajuda o amigo e considera justo que ele deseje a liberdade, mas teme se
comprometer, arriscando seu futuro. Quando Firmino e os demais seringueiros
fugitivos são capturados, vem-lhe o receio de que se descubra que ele teve
participação na fuga. Ao tomar conhecimento do castigo imposto aos fugitivos,
ele se horroriza, mas se cala. Não defende os seringueiros, apesar de estar
convicto de que eles nada devem, não ousa questionar o patrão. Sabe que reagir
significará perder a chance de partir, de recomeçar sua vida em Portugal e
terminar seus estudos.
Seu
comportamento em defesa da monarquia fora diferente. Pelos princípios
monárquicos, arriscara-se, exilara-se, afastara-se da mãe, da pátria. Como o
pai, que não traíra esses princípios nem mesmo para ter uma vida mais cômoda,
aceitando cargos oferecidos pelos republicanos em troca de adesão, ele defendeu
a monarquia veementemente.
A
mudança de mentalidade ocorrida no seringal não leva de fato a uma ação em
favor da justiça social, da “justiça para todos”, aspiração que ele revela ter
ao patrão. Existem motivos que justificam a omissão de Alberto. Não há
condições objetivas para que ele possa reagir contra as injustiças que
presencia no seringal. Está totalmente isolado, não tem apoio de ninguém. Na
revolta de Monsanto, ele contava com o apoio de outros que pensavam como ele,
jovens dispostos a se insurgir contra o regime republicano. O enredo do romance
demonstra que Alberto não encontra apoio nem no guarda-livros nem no seu
substituto de balcão. O primeiro parece-lhe também insatisfeito com a tortura
dos seringueiros, mas como ele, teme se envolver; o segundo age como um capacho do patrão.
Ao
final do romance, a justiça será feita pela personagem menos provável de
praticá-la: o negro Tiago, submisso a Juca Tristão a ponto de oferecer a cabeça
como suporte para o objeto com o qual ele pratica o tiro ao alvo, mas não capaz
de tolerar no seringal as práticas de tortura empregadas durante a escravidão
negra. O fogo ateado por Tiago tem como principal objetivo atingir Juca Tristão, pois tranca as portas do
barracão, impedindo que o seringalista possa sair. Desse modo, a destruição se
faz pela via mítica do fogo e atinge a fonte da injustiça.[141]
O
percurso do enredo de A selva informa
o assunto e a conseqüente organização do romance. De acordo com o que
expusemos, A selva faz a abordagem
dos principais tópicos de um romance do “ciclo da borracha”. Grosso modo, temos conhecimento da saga
de uma personagem recrutada para o seringal e o detalhamento das condições de
viagem, comum a muitas obras, a passagem pelo centro e depois pela margem. No
centro, são abordados assuntos como o trabalho do seringueiro, sua vida e suas
privações, principalmente a privação sexual, as ameaças do meio assombroso e
dos seus habitantes selvagens; na margem, focalizam-se os motivos que geram o
sofrimento e a escravidão dos seringueiros, trabalhadores que não progridem: a
extorsão através do aviamento, o poder do seringalista que controla com mão de
ferro o dia-a-dia no seringal, o seu enriquecimento, em contraste com a
pauperização dos seringueiros.
Numa
consideração inicial, em termos de conteúdo, A selva não apresenta uma abordagem diferenciada quanto às obras da
primeira fase do ciclo nem quanto às análises empreendidas por alguns autores
em obras não ficcionais. O escorchante sistema extrativo já havia sido
analisado por Euclides da Cunha em À
margem da história; os problemas da escassez da mulher e da sua conseqüente
negociação foram expostos por Alberto Rangel e Carlos de Vasconcelos. Através
da escritura desses autores, das passagens literárias às mais informacionais,
tinham sido expostos os principais aspectos que iriam caracterizar a abordagem
sobre o ciclo. Salientamos que, apesar disso, A selva atinge uma maior compreensão e aprofundamento do caráter
documental e histórico do ciclo. Dentro da temática histórica, é a obra que
melhor contempla todos os aspectos. Da viagem do recrutado à revolta
representada individualmente pela personagem Tiago, A selva fornece um amplo painel para entendimento do processo
econômico do ciclo através do discurso romanesco. A obra apresenta os
principais atores envolvidos nesse processo. Os tipos, como o tio Macedo, que
se comunicam com o migrante ainda antes de ser seringueiro e que também o
extorquem quando ele consegue ganhar algum dinheiro e volta à cidade; o
aviador, representado pela personagem do Comendador Aragão, aventureiro
português que faz fortuna; o seringueiro nordestino (Firmino, Agostinho); o
seringalista (Juca Tristão); seus auxiliares (Balbino, Caetano, Binda); o filho
do seringalista (Juquinha); o agregado (Tiago), que não participa do processo
de extração, mas tem importância na vida do seringal[142];
o caboclo (Lourenço), que no romance é o contraponto para os arrivistas, pois
não é movido pelo desejo de ganhar dinheiro; o guarda-livros (Guerreiro), uma
personagem bem delineada, e o estrangeiro, protagonista (Alberto) e personagem
secundária (Elias), aparecida já no fim do romance.
A
preocupação de Ferreira de Castro de dar ao romance um plano verossímil e bem
arquitetado aproxima-o do documentário. Nas palavras de Márcio Souza, o romance
atinge a mesma precisão de um “relatório crítico” e consegue resumir “os trinta
anos de loucuras nos seringais”.[143]
Em
relação ao epigonismo característico da primeira fase, ao qual já nos referimos
na introdução desse capítulo, A selva
dele se afasta, haja vista o autor Ferreira de Castro não estar inserido num
mesmo contexto de produção, tal como Cunha, Rangel e Vasconcelos. Desse modo, a
criação romanesca de Ferreira de Castro se origina fundamentalmente do fato de
necessitar pôr em cena o mundo do seringal, fruto de sua vivência, como ele
próprio informa. Para que Ferreira de Castro desse continuidade a um discurso
literário, seria necessário que representasse o trabalho continuado de vários
romancistas num mesmo contexto de produção, fosse esse trabalho de caráter semelhante
ou antagônico.[144]
O que não significa, por outro lado, que a obra A selva não possua expressão amazônica. Contexto de produção deve
ser entendido como as condições e as motivações que levam o autor a criar, que
se distinguem de ambiente que ele efetivamente enfoca.
Um
dos diferenciais que apontamos na obra de Ferreira de Castro quanto à produção
desses outros autores é a linguagem. A
selva é escrita num estilo límpido, preciso e objetivo. Algumas passagens
descritivas do romance ostentam a preocupação com o detalhe, mas não transmitem
informações através de torneios sintáticos característicos a Cunha e Rangel. A
clareza de linguagem apresentada por Ferreira de Castro distingue-se mesmo em
comparação aos outros autores portugueses. Para Brasil, a sua escrita
despoja-se da herança de escritores como Camilo Castelo Branco, Alexandre
Herculano, Eça de Queiroz, Fialho de Almeida, pois opta por não explorar a
opulência verbal ou o vernaculismo, preferindo um estilo “rico da seiva da
vida, sem artificialismo.”[145]
Num
plano, porém, a expressão lingüística de Ferreira de Castro e de Euclides da
Cunha e seus epígonos confluem: na criação de um discurso voltado para as
excentricidades do meio amazônico.[146]
Embora sem a grandiloqüência destes, Ferreira de Castro expressa os mesmos
espasmos diante da natureza assombrosa, de sua fantasmagoria de luzes e
sombras, seus silêncios inquietantes e seus ruídos assustadores, suas árvores
portentosas e seu entrançado de cipós traiçoeiros, tudo concorrendo para a tese
apresentada no romance de que o ambiente amazônico animaliza o ser humano:
“[...] o homem, simples transeunte no flanco do enigma, via-se obrigado a
entregar o seu destino aquele despotismo. O animal esfrangalhava-se no império
vegetal e, para ter alguma voz na solidão reinante, forçoso se lhe tornava
vestir pele de fera [...]”.[147]
A selva distingue-se das obras da
primeira fase como distinguir-se-á também de obras da fase posterior por
apresentar um plano narrativo que não se detém no decalque de um aspecto do
ciclo, abordando-o superficialmente. O patrão seringalista articula-se num
grupo econômico, possibilitando a compreensão do significado de seu papel nesse
grupo. Apresenta-se para além do estereótipo de um homem mau; é a representação
de um homem enriquecido pela super exploração do trabalho de outros; é o patrão
que defende a sua riqueza acumulada e não pode prescindir de sua fonte
geradora, tal qual depreende-se deste trecho do romance em que encolerizado com
a fuga dos seringueiros, Juca Tristão toma conhecimento das suas “dívidas”
acumuladas:
Inclinado
sobre o ‘contas-correntes’, Alberto elucidou:
- O Manduca
devia um conto e setecentos e vinte e três... O Firmino um conto e duzentos...
Quem eram os outros?
- O Romualdo e
o Aniceto – comunicou Balbino.
Alberto
folheou de novo:
- O Romualdo,
dois contos e seiscentos e quarenta...
Juca voltou a
exaltar-se:
- Dois contos
e seiscentos! Cachorro! Cachorro! E eu a ter pena dele! Sou tolo mesmo! Vinha
chorar para o pé de mim e, só em pílulas para a febre, lhe vendi uma fortuna!
Que morresse, que fosse para o inferno! Mas eu fui tolo e ele agora me paga
assim!
Ao pequeno
silêncio sucedeu a voz de Alberto:
- O Aniceto
devia oitocentos e noventa...
- Oitocentos e
noventa... – Um conto! Com dois e seiscentos do outro, quase quatro. Quanto
devia o Manduca?
- Um conto e
setecentos...
- Cinco contos
e tal! E o Firmino?
- Um conto e
duzentos...
- Seis contos!
Quase sete contos por água a baixo! Eu aqui a sacrificar-me longe da minha
mulher e do meu filho, para que esses cachorros me roubem assim! Porque é um
roubo! É um roubo! E eu que podia estar mesmo descansado na minha fazenda do
Marajó! Se os apanho!...[148]
Apontado
por Djalma Batista como romance social, A
selva atinge essa perspectiva ao apresentar as contradições do mundo do
seringal. A passagem do romance em que os seringueiros fugitivos são capturados
por outros seringueiros demonstra uma dessas contradições, que é refletida pelo
protagonista nos seguintes termos: “[...] ‘Como podia ser, como podia ser que
as vítimas saboreassem também o papel de algoz? De que sórdida matéria era
formada a alma de alguns homens, que gozavam em castigar a desgraça alheia,
mesmo quando era igual à deles?’ ”[149]
Por
outro lado, a contradição também constitui o plano ideológico do romance que
propaga a tese do meio como responsável pelos desajustes humanos. De acordo com
Lucas, o romance de tese costuma aplicar o método dedutivo para exame dos
problemas sociais, significando que o conceito antecede a realidade.[150]
Analisando o determinismo do meio esboçado em A selva, é essa precisamente a noção – ante um meio estabelecido
como bárbaro, todos os indivíduos se barbarizam.
O
ficcionista e ensaísta Jorge Tufic, ao fazer um levantamento da produção
ficcional sobre o “ciclo da borracha”, declara que A selva e La voragine,
obra do romancista José Eustásio Rivera, encerrariam essa produção e destaca
que as obras do ciclo não atingiram “um vago contorno geral da realidade em
causa”.[151] Há, na
avaliação do autor primeiramente, uma falha ao não considerar um veio de
produção que continuou aberto para a temática do ciclo e, em segundo lugar, um
juízo precoce sobre o grau de aprofundamento das obras.
Ao
destacarmos A selva como um romance
que, seguindo a linha da abordagem histórica do ciclo, propicia uma compreensão
abrangente do tema, não desconsideramos que em outros romances, como, por
exemplo, Coronel de barranco, ocorra
também uma construção ficcional contundente. O tratamento dado à obra em
relação ao ciclo recebe o mesmo detalhamento didático de A selva. A selva e Coronel
de barranco são, por isso, dois romances em que a realidade em causa – “o
ciclo da borracha” – é tratada com aprofundamento. Entretanto, a obra de
Ferreira de Castro apresenta um diferencial em relação à de Araújo Lima que nos
levou a elegê-la como recorte para esse estudo. Seu protagonista é partícipe e
analista no mundo do seringal, enquanto Matias, de Coronel de barranco, é
basicamente analista. O fato de ser Alberto um protagonista que vive as
próprias situações que analisa confere densidade à narrativa através do embate
que se cria entre sua consciência e o sistema com o qual se depara.
Tufic
também observa que o romance La voragine
diverge de A selva por possuir um
caráter de libelo ou revolta enquanto o último somente relataria os dramas
vividos no seringal. Embora não possa se assemelhar a um libelo, a abordagem do
romance A selva denuncia a extorsão e
a escravidão num seringal amazônico e seu desfecho propõe uma destruição desse
sistema injusto, determinando também um sentido de revolta. Revolta que não é
arquitetada nem praticada por seringueiros indignados. O fato de essa revolta
ser praticada por uma personagem negra demonstra que a visão de mundo do autor,
expressa pelas suas palavras de que em seu espírito sobrepõe-se “[...]‘uma
causa mais forte, uma razão maior: a da humanidade’ ”[152],
não tem como objetivo pôr em evidência apenas uma forma de injustiça. O negro
Tiago, despojo de outro processo de espoliação é, por isso, o escolhido para
pôr fim ao local que representa a injustiça (o barracão) e o elemento humano
que a executa (o seringalista). Suas palavras de justificativa do ato que
pratica surtem o efeito de uma sentença: “O homem é livre.”[153]
A destruição não é eficiente, uma vez que o seringalista é apenas um elo, e inclusive
o não mais poderoso, da grande cadeia de espoliação montada em vista da
extração do látex, mas é a destruição que o romancista elege como possível no
contexto em que se desenvolve o romance.
Apesar
de possuir características em consonância com o romance neo-realista português
o qual recebe influência da ficção sócio-realista brasileira dos anos 30[154],
A selva apresenta os pontos básicos
do que Alfredo Bosi considera um romance de tensão crítica em oposição a um
romance de tensão mínima, mais em acorde com a prosa neo-realista. Segundo o
autor, o romance de tensão crítica alcança “uma verdade histórica muito mais
profunda”, não se restringindo apenas a enfocar a cor local ou datar os fatos.[155]
É,
pois, A selva um romance que não se
limita à perspectiva de enfocar fatos isolados característicos do ciclo e que
procura concentrá-los e organizá-los sistematizando-os. Abrangendo tanto o
centro quanto a margem, a narrativa demonstra o nexo causal entre eles. Não
aleatoriamente, Alberto vive antes a experiência do centro e depois a da
margem. Quando vem a se instalar na margem, já não é mais possível considerá-la
sem a outra experiência. A manipulação do contas-correntes do seringal o põe a
par de uma verdade que suspeitara ao receber a nota de seu aviamento e compará-la
com a dos outros seringueiros no tempo em que ainda era um brabo como eles. As
faturas lançadas evidenciam que os débitos dos seringueiros e o conseqüente
crédito para Juca Tristão resultam de uma cobrança extorsiva do preço da
mercadoria aviada e de um pagamento ínfimo pela produção da borracha, depois
vendida a um alto preço. Paralelamente, toma conhecimento de que o trabalho não
pago dos seringueiros proporciona as altas despesas do seringalista:
Estavam ali as
faturas, vendendo a Juca Tristão por cinco o que ele entregava ao seringueiro
por quinze e muitas vezes até por vinte. Estavam as notas da borracha, que se
comprava ali por dois e se vendia por cinco e seis na praça de Manaus.
Alberto sentia
uma curiosidade dolorosa ao ler toda essa papelada, confrontando algarismos e
inventariando o tempo que cada um trabalhava a mais em proveito do amo. Depois,
chamado pelas disparidades das situações, quedava-se absorto sobre as cifras da
mesada que Juca enviava à mulher – três contos de réis que significavam o preço
dos muitos anos que um seringueiro necessitava para o seu resgate. Alberto
juntava aquilo às viagens do patrão a Belém, sempre marcadas por grandes
quantias recebidas da ‘casa aviadora’, as maiores que se viam em todos os
lançamentos verificados – e ficava mais pensativo ainda. Doíam-lhe essas
descobertas, esses números e contrastes. Poder absoluto, por herança ou outro
conceito estabelecido, em prol dum só todos os demais se sacrificavam.
Confirmava-se, assim, tudo quanto se dizia sobre a vida dos seringais, desde o
Pará à Bolívia e do Ceará distante às fronteiras do Peru, onde a sorte dos
párias não seria melhor.[156]
Além
do sistema de aviamento, base de sustentação econômica do ciclo, o romance
expõe as conseqüências que a saga da extração traz para a população humana,
transformando o encontro do migrante nordestino e do nativo amazônico num
desfecho traumático através do assassinato do caboclo Lourenço pelo seringueiro
Agostinho. O motivo causador do assassinato não é a riqueza da terra, mas o
segundo motivo de cobiça no seringal, a mulher. Agostinho pratica a vingança
sangrenta contra Lourenço porque este não lhe concede em casamento a filha
ainda criança. No romance, Lourenço é o símbolo do homem nativo. Indiferente à
sede de enriquecimento, sua existência se orienta apenas pela posse de “uma
barraca, uma mulher e uma canoa.” Os homens nordestinos que vêm desbravar a
selva, atraídos pela promessa de enriquecer, despertam-lhe piedade, pois ele os
vê sucumbirem vencidos pelo meio que lhes é adverso. A vida na selva só é fácil
para ele que “letargicamente” aceita viver sem ambições. O processo de
exploração da riqueza natural, trazendo com ele o ádvena e conseqüentemente a
cobiça, as necessidades incontidas, aniquila o ritmo de vida dos habitantes
cordatos e hospitaleiros como Lourenço.
A repercussão
mundial que alcançou o romance A selva,
tendo sido traduzido na Alemanha, Bélgica, Bulgária, Tchecoslováquia, França,
Holanda, Inglaterra, Espanha, Iugoslávia, Itália, Noruega, Romênia, Suécia, Suíça,
Canadá, Estados Unidos, ampliou conseqüentemente o seu leque de estudos.
Uma parte da
crítica estrangeira enfatiza a grande capacidade da obra de evocar o exotismo
da natureza amazônica. Em prefácio escrito em 1932 para a tradução alemã , o
tradutor Richard Bermann refere-se à selva como o inferno verde e à capacidade
de Ferreira de Castro de descrever a sua “trágica beleza”[157]
Para o crítico
italiano Alberto Viviani, a novidade na obra de Ferreira de Castro acha-se no
ambiente ou, mais precisamente, no poder que a obra demonstra estar concentrado
na natureza, soberana em relação ao ser humano. Põe, por isso, a natureza no
papel de protagonista do romance: “[...] tudo o mais não passa de complemento
necessário [...] tudo está subordinado à vastidão primitiva da selva que
hostiliza e aniquila”.[158]
A crítica
estrangeira, que não nos cabe detalhar nesse trabalho, é por nós enfocada à
medida em que sua percepção do meio amazônico ressaltada pela leitura do
romance se articula com a percepção da crítica brasileira.
A Amazônia,
definida por Euclides da Cunha como a “última página ainda a escrever-se do
Gênesis”[159] é um
referencial geográfico e literário difundido amplamente no Brasil. Exótica para
os próprios brasileiros, é caracterizada da seguinte maneira por Peregrino
Júnior:
O homem que
penetra a Amazônia – o mistério, o terror, ou se se quiser, o deslumbramento da
Amazônia – escuta desde logo uma voz melancólica: a voz da terra. Abandonado na
vastidão potâmica das águas fundas, dos igarapés e igapós paludiais, das
ásperas florestas compactas, perdido naquele estranho mundo de assombração,
acossado pelo desconforto do calor sem pausa e pela agressão da mata insidiosa,
com seus bichos, suas febres, suas sombras, seus duendes, êle logo de entrada
recebe um golpe terrível, e desde então trava a luta mais trágica da vida, que
é a da adaptação ao meio cósmico. As fôrças que o esmagam – fôrças telúricas de
aparência indomável – são um convite permanente à retirada e ao regresso.
Paraíso dos aventureiros, dos charlatães, dos mercadores e dos flibusteiros, a
Amazônia em geral não retém ninguém, expulsa os seus desbravadores, que dela,
no entanto, se recordam sempre com temor e nostalgia ao mesmo tempo. Daí o
destino nômade dos seus habitantes, que dificilmente ali se fixam e permanecem.
O homem é, na selva, o intruso descrito por Euclides, sempre insatisfeito e
instável, esperando a hora de enriquecer para voltar, para fugir, para se
libertar em suma... Afinal de contas só o caboclo – fatalista, taciturno e
triste, - na inércia do seu conformismo congênito, ali fica, e não quer sair. O
homem daquele mundo é assim um ‘ser destinado ao terror e à humilhação diante
da natureza’. Todos, de resto, nativos e adventícios, vivem lá num estado
permanente de perplexidade, que explica a atitude literária de quantos viram de
perto a Amazônia [...].[160]
Peregrino
Júnior veicula essa concepção em 1955, demonstrando ainda o mesmo referencial
exposto por Euclides da Cunha, em 1908, no prefácio de Inferno verde ou em 1909, em À
margem da história. De forma significativa, na expressão crítica
brasileira, o tema do ambiente aparece como subsidiário ao tema do ciclo na
análise de A selva. Um dos textos que
mais se destaca como estudo do romance foi escrito por Humberto de Campos sob o
título “Um romance amazônico”. Neste texto, Campos toma a defesa do romancista
português em virtude da acusação que lhe foi feita por setores da crítica
brasileira de ter o escritor enunciado inverdades sobre a realidade amazônica.
Campos
ressalta que o verdadeiro conhecimento sobre a Amazônia foi revelado a partir
da escrita de Ferreira de Castro, respaldada pela experiência, esta, segundo
ele, imprescindível para conhecer a fundo o seringal. A verdadeira dimensão do
assunto teria sido ignorada ou não compreendida pelos outros autores que
tentaram expressá-lo porque o perceberam externamente, apenas como visitantes.
Neste assunto, Campos faz do homem o foco central: “[...]o que interessa, na
Amazônia, à literatura, é o homem, e, particularmente, o seringueiro e a sua
tragédia”.[161]
Conquanto
ponha na linha de frente da expressão amazônica a aventura do homem como
desbravador, a natureza não deixa de figurar com um poder grandioso, a ponto de
a luta que o homem contra ela travou se assemelhar para o autor como o “combate
de Siegfredo contra o dragão”. A seu ver, essa heróica luta em que a natureza
saíra vencedora, fazendo milhares de vítimas não tinha encontrado a justa
expressão antes de A selva. Campos
também se deixou fascinar pela espécie de “retórica do assombro”, expressa
tanto pelos críticos quanto pelos ficcionistas. Uma passagem de um conto de sua
autoria, intitulado “O furto: um conto amazônico” , exemplifica-o:
Na quietude
daquela hora de assombros, afugentando ou convocando os demônios da terra,
coaxavam os sapos, martelando, monótonos na bigorna do silêncio nas moitas
húmidas de onde partiam, confundindo-se, tantas vozes anônimas, os pirilampos
eram como a centelha dessa oficina monstruosa, onde os batráquios batiam,
talvez, a couraça de ouro do sol.[162]
O
enfoque no exotismo já não se faz presente na análise empreendida por Márcio
Souza em seu ensaio A expressão
amazonense. Numa severa avaliação da produção literária amazonense, o autor
aponta a sua inconsistência por não criar uma representação autêntica da
realidade amazônica, isolando-se na ostentação e proporcionando apenas desfrute
para alguns pares de literatos que não almejavam atingir um público abrangente
e sim uma pequena elite interessada na literatura como um ornamento. Para
Souza, durante o “ciclo da borracha”, essa tendência atingiu o ápice:
Não há nenhum
escritor do “ciclo da borracha”, com exceção de Ferreira de Castro, marcado com
a tarefa de escrever como um escritor. Eram todos bacharéis que escreviam e a
literatura algo de não desmesuradamente perigoso. O bacharel que escrevia tinha
um público especializado, da mesma forma que as diversas qualidades da borracha
possuíam seus compradores determinados. Raramente publicavam um livro, eles tinham os jornais. O livro já
pressupunha uma universalidade, um alcance que não interessava. O jornal
satisfazia pela postulação do indefinido, do punhado de leitores fiéis e
selecionados que iriam escolher os poemas entre o noticiário e o reclamo.[163]
Souza
aponta em A selva o desmascaramento
da ostentação. A face que a prosperidade do ciclo oculta por intermédio da
cidade com sua parte economicamente prestigiada da população é revelada pelo
discurso literário de Ferreira de Castro: “[...] Mostrando o reverso da
ostentação, ele sentiu a vertigem dessa natureza submetida e a sorte dos
miseráveis errantes. A selva possui o discurso exato, diariamente sofrido, onde
a realidade não era uma aparência incômoda, obrigando a literatura a se tornar
uma boêmia perdida.”[164]
Ferreira
de Castro realizou a expressão lúcida do “ciclo da borracha”, distinguida por
Souza, como um autor à margem do processo de produção literária amazonense. A
visão do ciclo que logrou romper o marasmo de uma literatura provinciana, sendo
o romance, nas palavras de Souza, o primeiro a marcar encontro público com os
leitores do mundo, possui o acento do escritor estrangeiro que mantém uma
concepção de mundo eurocêntrica. Em algumas passagens do romance, isto pode ser
observado através de uma negatividade na descrição da natureza amazônica em
relação a uma positividade da natureza européia:
[...] A árvore
solitária que borda melancolicamente campos e regatos na Europa, perdia ali a
sua graça e romântica sugestão e, surgindo em
brenha inquietante, impunha-se como inimigo. Dir-se-ia que a selva
tinha, como os monstros fabulosos, mil olhos ameaçadores, que espiavam de todos
os lados. Nada a assemelhava às últimas florestas do velho mundo, onde o
espírito busca enlevo e o corpo frescura [...].[165]
Ferreira
de Castro retoma o discurso de viajantes, cronistas e cientistas sobre a
Amazônia à medida que os motivos que compõem a trajetória do protagonista
Alberto no seringal são os da confrontação com o meio bárbaro. O enredo do
romance termina com a destruição da fonte de injustiça mas também com a
possibilidade de Alberto deixar o meio que poderia levá-lo à condição de fera.
Toda
a constituição do enredo se volta para a aprendizagem subordinada à libertação
do meio. Alberto perde a soberba ao passar pela experiência do seringal,
constatar o sistema de espoliação do trabalho humano ali implantado, mas o
mesmo meio que o faz descobrir a solidariedade para com os homens humildes que
consomem a vida num trabalho de que não tiram proveito se torna o algoz de
todos esses homens e dele próprio. Dando este contorno à obra, o ficcionista
segue uma tendência do romance naturalista, destacada por Brayner:
Reduzindo
todos os homens a uma mesma fórmula – criaturas dominadas pelo meio, raça e
momento – o romancista naturalista parte sempre do princípio mestre que todos
os homens são fundamentalmente iguais. Não importa a classe social a que
pertençam e nem mesmo o grau de cultura a que se liguem; submetidos ao ambiente
e às paixões instintivas, agem todos de forma idêntica [...].[166]
A selva significa essa redução da
personagem protagonista que chega ao meio desconhecido como um ser distinto
perante os outros. É estudante de direito enquanto os demais recrutados não
possuem instrução; leva para a barraca livros entre seus pertences ao passo que
os demais muitas vezes além das roupas do corpo levam apenas as ferramentas
básicas aviadas pelo seringalista; é moço fino, não adaptado para o trabalho
grosseiro de penetração na mata e corte das seringueiras e os outros, seres
rudes dos quais se espera adaptação ao meio. Entretanto, o meio irá igualar o
protagonista no decorrer da narrativa aos outros. O cerne desse momento se
estampa na passagem do romance em que o protagonista, ao se olhar no espelho,
não vê sua fisionomia atual, mas o mesmo rosto embrutecido, animalizado dos
homens com os quais labutou outrora nas estradas de corte. A única chance que
se apresenta à não capitulação ao meio é deixá-lo, fugir de sua barbaria em
busca da civilização. Essa é a ambigüidade da realização social do romance:
documentar as relações econômicas que promovem o ciclo e, ao mesmo tempo,
apresentar uma justificativa determinista, fatalista, para essas relações.
Beiradão: a percepção de um escritor nativo sobre o ciclo
A
prerrogativa de escrever sobre o “ciclo da borracha” tendo sido testemunha ou
partícipe do processo dá-se com alguns escritores. Entre eles, incluem-se
Ferreira de Castro, Humberto de Campos, Alberto Rangel, Carlos de Vasconcelos e
Álvaro Maia. As experiências de Ferreira de Castro e Humberto de Campos os
situam no barracão, executando as tarefas do dia-a-dia que ali se faziam
necessárias. O primeiro fazia pequenos serviços não tendo, segundo Jaime
Brasil, trabalhado na estrada de corte por ser ainda muito jovem. O segundo foi
gerente de seringal. Quanto a Alberto Rangel e Carlos de Vasconcelos,
executaram como engenheiros serviços de demarcação de terras, o que lhes
possibilitou também um contato com os seringais.
A
particularidade que cabe a Álvaro Maia é ter conhecido o mundo do seringal não
como alguém que vem de fora, mas que nasceu nele. O cenário de seu nascimento é
o sítio- seringal Goiabal, localizado à margem esquerda do rio Madeira, no
município de Humaitá. Seu pai foi um imigrante da região cearense do Crato,
descendente de família próspera que, como outros, veio para a Amazônia,
seduzido pela possibilidade de ganhar dinheiro com a borracha, e a mãe, uma
amazonense, herdeira de proprietário de seringais no rio Madeira, que estudou
em internato religioso. Em sua obra Beiradão,
esses traços da família são reproduzidos através das personagens Fábio e sua
esposa. Maia fez os primeiros estudos com a mãe, que o alfabetizou, e depois,
seguindo um roteiro comum à condição de filho de seringalista, completou os
estudos fora do Amazonas. Primeiramente, em Fortaleza e depois no Rio de
Janeiro onde se bacharelou em Direito na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas
e Sociais.
Conforme
ressalta Santos[167]
Álvaro Maia veio a tornar-se uma liderança política estadual, quando regressou
dos estudos, por fazer parte ou ser oriundo de um grupo dominante local que lhe
possibilitou primeiramente ocupar cargos públicos como redator da Assembléia
Legislativa, auditor da Força Policial do Estado do Amazonas, Secretário da
Superintendência do Território Federal do Guaporé, Secretário da Comissão de Propaganda
e Organização do Centenário da Independência, Secretário da Municipalidade de
Manaus, Diretor da Imprensa Pública.
Contando
com apoio de setores tradicionais da economia local, ligados ao comércio e ao
extrativismo, Álvaro Maia é nomeado por Getúlio Vargas interventor federal do
Amazonas em 1930, sob a indicação de Juarez Távora, delegado federal do Norte.
Essa interventoria foi exercida apenas até 1931, quando Maia foi exonerado por
Vargas em virtude de ter dissolvido o Tribunal de Justiça do Amazonas, causando
descontentamento entre a classe dos juízes, que recorreram a Vargas. Maia
retorna ao poder em 1934, elegendo-se indiretamente governador constitucional
do Estado do Amazonas. Graças à formação de um secretariado constituído por
parentes e cooptados políticos, mantém-se no cargo. Em virtude do golpe
político do Estado Novo, em 1937, torna-se interventor federal e governa até a
queda de Vargas, em 1945. Em 1946, é eleito senador constituinte. Por
intermédio de eleições diretas, volta ao governo do Amazonas em 1951 e, em
1954, é derrotado em nova campanha política. Só consegue retornar ao cenário
político em 1966, elegendo-se senador pela Aliança Renovadora Nacional (ARENA).
O
elo com o seringal e a carreira política marcam
a obra do escritor Álvaro Maia, sendo que o ambiente do seringal dá-lhe
o conteúdo e a política o delineamento ideológico. É o escritor amazonense que
mais se voltou para os motivos ensejados pela vida no seringal e os motivos
correlatos a ela. A maioria da produção abordando o seringal foi publicada a
partir dos anos 1950, durante o retorno à literatura após as derrotas
políticas.[168] Em
1956, é editado Gente dos seringais;
em 1958, Beiradão e Buzina dos Paranás; em 1963, Banco de Canoa; em 1966, Defumadores e Porongas. Buzina dos Paranás destaca-se nessa
série de narrativas por ser um livro de poemas, mas os motivos do seringal
trabalhados nos outros livros não estão ausentes, uma vez que o autor dedica
também poemas à seringueira e a assuntos abordados nas demais obras, como, por
exemplo, a figura da parintitin Narcisa, mãe de leite índia, ou aos aviões
“Catalinas” que transportavam passageiros e cargas e levavam auxílio médico aos
seringueiros.
Existe
uma continuidade nos assuntos abordados em Beiradão
e nas demais obras. Uma vez que sua publicação é anterior à maioria delas,
entendemos que o autor pretendeu desdobrar o seu conteúdo através dos outros
livros. Aproveitando um título que o escritor dá à quarta parte do livro Banco de canoa, podemos dizer que as
narrativas contidas em Beiradão e nas
outras obras são “histórias que se
repetem.”
Contendo
crônicas sobre acontecimentos e pessoas ligadas ao desbravamento de regiões às
margens dos rios amazônicos[169]
e histórias prosaicas sobre situações da vida interiorana e dos seringais, as
figuras que aparecem nas narrativas são quase sempre as mesmas: pobres,
figurões poderosos, religiosos. A vida no interior é registrada através de
manobras políticas, apadrinhamento, vinganças passionais, disputa e abuso de
poder. O autor também procura captar aspectos culturais como crenças, seres
lendários. Há nas histórias abordando as relações políticas interioranas a
preponderância da noção de que a não aderência a um grupo político pode
resultar em perseguições e enxovalhamentos. Já as histórias envolvendo
religiosos geralmente abordam sua castidade, honestidade ou desonestidade.
A
identificação entre Beiradão e as
demais obras dá-se também por intermédio de personagens comuns. Fabrício, velho
Unias são os contadores de histórias; velha Romana, Zé dos Espíritos, os
curandeiros; Narcisa, a ama de leite índia. Personagens como Fábio, Segadais e
padre Silveira constituem uma síntese de personagens de outras obras à medida
que representam respectivamente o bom pioneiro, o arrivista e o missionário.
Álvaro
Maia atribui uma autoria coletiva às narrativas contidas em obras como Gente dos seringais, Beiradão, Banco de canoa e Defumadores
e porongas. Em Gente dos seringais, informa que reduziu
narrativas ouvidas de seringueiros e hinterlandinos a textos escritos que
pudessem ser compreendidos pelos próprios narradores. Para tanto, amoldou-as à
“[...] tessitura ductil dos narradores, fugindo, quando possível, ao ‘latim do
padre e do advogado’[...].”[170]
Entretanto, declara ter modificado o “colorido das tragédias passionais” que
pudessem se apresentar como obscenas. Eximindo-se da autoria, considera-se um
“mero compilador”. Nas demais obras, repetem-se as mesmas justificativas no
sentido de atribuir as narrativas à imaginação popular. A veracidade das obras é
outro ponto sempre destacado.
A
intenção do autor de atribuir a autoria das narrativas a uma coletividade
explicita uma preocupação de não se colocar como criador de acontecimentos que,
segundo sua percepção, devem-se ao barbarismo do início do processo de
desbravamento:
Certas
narrações prendem-se aos tormentos sexuais nas selvas, quando povoadas
exclusivamente por homens, sem refrigeração de mulheres. Surgiram tremendas
crises, - raptos e crimes sangrentos, assunto exaurido pelos estudiosos.
Evoquei alguns instantes de intenso realismo, revivescendo, em tintas escassas,
e sem colorido descritivo, os dramas e os imprevistos patológicos, raros após a
incipiente formação geo-social dêstes últimos tempos, na hiléia fragmentada
pelas ânsias de estruturação.[171]
O
autor, dessa forma, demonstra uma consciência do impacto do conteúdo da obra e,
por isso, torna-se um mediador entre sua produção e o público. Conforme observa
Sartre, a mediação reflexiva do autor remonta ao fim da Idade Média e se
acentua no romance burguês do século XIX. Anteriormente, o autor limitava-se ao
ato de narrar e não procedia uma reflexão sobre a sua função de autor, “[...]
os temas de seus relatos eram quase todos de origem folclórica, ou ao menos
coletiva, e ele se limitava a utilizá-los [...].[172]
Ainda que Maia ponha-se como um mero compilador da imaginação popular, é
possível identificar em suas narrativas uma ponderação de autor instruído sobre
o conteúdo de cunho não culto que afirma compilar. A inserção de suas
convicções políticas em muitas dessas narrativas atesta que procedeu um
trabalho de elaboração consciente.
Sartre
aponta o momento em que o conteúdo da narrativa, suas palavras, era tido como
as próprias coisas que designava como de um “realismo objetivo e metafísico” e
o distingue do “idealismo literário” em que a substância do relato é a
subjetividade do autor. Neste último, “[...] a história que se oferece ao
público tem como característica principal o fato de já estar pensada, isto é,
classificada, ordenada, podada, esclarecida [...].[173]
Beiradão realiza-se intermediariamente
entre a feição do romance burguês e a narrativa. A distinção entre essas
categorias é posta por Walter Benjamin ao apontar a procedência da narrativa da
tradição oral ou da experiência relatada por terceiros e a limitação do romance
ao indivíduo isolado.[174]
Destacamos
que Álvaro Maia atribui a origem das narrativas aos seringueiros e moradores
das margens dos rios, colocando-se como o compilador que reduziu a textos
escritos esse repertório de histórias transmitidas oralmente. Beiradão apresenta uma quantidade
expressiva de pequenas histórias cujos assuntos muitas vezes não se limitam aos
tópicos correntes sobre o seringal. Nelas, o fabulário nordestino soma-se ao
caboclo. Os assuntos inerentes ao dia-a-dia do seringal se tornam menos
exclusivos, o que não impede que o romance realize uma visão sobre o “ciclo da
borracha”.
A
unidade que dá ao mosaico de narrativas uma constituição de romance é
estabelecida pelo protagonista Fábio e sua trajetória de retirante a
seringalista. Ao mesmo tempo que possui uma história independente, Fábio também
é o elo de condução das narrativas paralelas, exercendo o papel de um ouvinte.
Beiradão é organizado em três partes:
Bamburral, Serras e Centros e Beiradão. Segundo o autor, em nota preambular, o
beiradão caracteriza “[...] a margem dos rios principais, onde se fixaram os
primeiros desbravadores e permaneceram os seus descendentes”.[175]
O bamburral é descrito no decorrer do romance através de uma analogia: “A
sociedade em formação imitava aqueles bamburrais. Na aparência, era serena,
como uma orquestração de sanhaços, mas, por outro lado, oscilavam em ousadias e
ambições.[176] Essa
divisão espacial do romance remete a uma divisão temporal do ciclo, tendo em
vista que a primeira parte trata do início do desbravamento através da chegada
de pioneiros, entre eles, as personagens de Fábio, Segadais e Padre Silveira.
Serras e Centros representa o período intermediário, abordando o auge e o
princípio do declínio do ciclo. Enquanto, na primeira parte, o protagonista
Fábio deixa o Amazonas após ter acumulado algum dinheiro, trabalhando como
recenseador para um coronel seringalista e volta ao Ceará, esse momento do
romance marca o seu retorno e estabelecimento definitivo no Amazonas, tornando-se
pequeno proprietário de seringal. O romance demonstra que, por ser pequeno
proprietário e investir em meios alternativos como a agricultura e a pequena
criação, Fábio resiste e não se arruína totalmente com a crise.
A terceira parte do livro apresenta o mundo do
seringal pós-crise. O bamburral e o beiradão especificam ainda a índole dos
desbravadores. Aqueles que se alocaram nos bamburrais exploraram a terra sem
com ela criar vínculos, já aqueles que se instalaram nos beiradões tornaram-se
os elementos que se fixaram na terra e nela permaneceram mesmo quando se
desencadeou a crise.
Apesar
de a fundamentação do romance estar calcada na figura de Fábio e de sua atuação
dentro do que representa o ciclo, o enredo se inicia com a personagem Segadais.
Estudante de direito, mais interessado em ganhar dinheiro do que em seguir o
rumo traçado pelo professor de “levar justiça às massas desamparadas”, Segadais
se ajusta aos procedimentos ditados pelos poderosos coronéis de barranco,
consciente de que dessa atitude depende o êxito de sua carreira:
Nas sedes
municipais, o profissional tinha de reagir à politicagem, filiando-se, sem
entusiasmo, às hostes do governo, representadas pelo coronel barranqueiro, cuja
autoridade pairava acima do superintendente.
Segadais resistiu,
mas teve, ante a inutilidade dos esforços, de babujar no cocho, onde babujavam
o médico, o dentista e o vigário [...]
Diabo! Não
viera tomar banhos salgados nos altos rios do inferno e sim arranjar dinheiro,
supremo sonho do bacharel pobre no pouco movimentado foro local.[177]
Segadais
é o emblema de profissionais (engenheiros, advogados, médicos) que,
recém-formados, vêm tentar carreira fora dos grandes centros e findam por ter
de se submeter ao jugo do poder local, mas, como seringueiros, comerciantes,
almejam acumular riqueza. Não tendo o destino atado à escravidão do seringal,
valem-se do oportunismo, casando-se com a filha de algum potentado ou partem,
como Segadais, para outras alternativas, “[...] enganando bolivianos,
transpondo cachoeiras nas jangadas, imaginando diversões para os seringueiros,
centralizando-os em torno às ladainhas.”[178]
Fica, assim, caracterizada essa personagem como o arrivista. Move-o o desejo de
ganhar dinheiro e não o espírito de estabilidade. Mas, conforme é demonstrado
nas obras de Álvaro Maia através de outras personagens, Segadais também é
afetado pelo “banzo da floresta”. No romance, essa situação é descrita como um
estado em que aqueles que retornavam as suas terras
[...]
enfermavam da alma. Ouviam o murmúrio das selvas brutas, o bater do vento nas
praias onduladas, em cujos baixios os peixes se empilhavam aos cardumes, as
chuvas sem-fim [...] A mesma nostalgia do marujo que não se acostuma à terra
firme, e do catequista, que retorna às malocas ameaçado de ser morto pelos
índios.[179]
Paralelamente
ao perfil aventureiro de Segadais, está a persongagem Padre Silveira,
representando a presença religiosa no processo de desbravamento desencadeado
pela extração da borracha. Gondim destaca que as figuras do aventureiro, do
missionário e do abnegado são comuns ao processo de conquista da Amazônia.[180]
Padre Silveira, por seu turno, acumula o papel duplo do missionário e do
aventureiro no sentido de que motiva-o o mesmo senso de oportunismo de
Segadais, levando-o a aproveitar-se do sacerdócio para amealhar recursos em
proveito próprio. A principal causa que se apresenta no romance para os desvios
do padre, que flerta com as mulheres casadas e aproveita-se da boa fé dos
seringueiros e da população interiorana, são os efeitos do meio, os quais o
levam a agir de maneira diferenciada:
[...] Fábio
sustentava que a honestidade, até nos sacerdotes, depende do ambiente. Fácil a
comparação: Padre Silveira, como vigário na serra, espalhando confissões em seu
cavalo choutador, bebendo copos de leite mugido, e Padre Silveira nos
seringais, comendo tambaquis com pimenta, sentado em rede macia de Zefa Mixira,
enquanto o pescador estava no lago e os curumins na roça. Não há dúvidas: a
honestidade depende também do ambiente.[181]
Nos
trabalhos de desobriga pelo Amazonas, instalando o altar portátil onde for
conveniente para batizar pagãos, dizer missa, sacramentar uniões, Padre
Silveira demonstra seriedade, usando a batina e a coroa. Findas as obrigações
do sacerdócio, trata de comercializar clandestinamente com os regatões a
borracha e os demais produtos recebidos em doação pelos fiéis. O lucro
sobrepõe-se aos escrúpulos sacerdotais; quando estão em jogo os seus ganhos, os
pecados dos fiéis diminuem de importância. A sua noção de pecado distingue os
de menor e maior gravidade, esses últimos os verdadeiros. Entre os pecados
verdadeiros, está o adultério que ele próprio ajuda as mulheres a praticarem.
Não teme, porém, confessá-lo ao Monsenhor, confiante na justificativa de que o
ambiente é o responsável pelos excessos.
Tanto
Padre Silveira quanto Segadais opõem-se à personagem Fábio Moura. Essas três
personagens recebem um tratamento individualizado no romance, que é
entrecortado por episódios em que surgem dezenas de personagens em casos
diretamente relacionados ao seringal ou à vida interiorana. A história
principal do romance é protagonizada por Fábio e refere-se desde a sua migração
até o período pós-crise que enfrenta como seringalista.
No
que diz respeito à história principal vivida pela personagem Fábio, o enredo do
romance não segue uma ordenação rigorosamente linear. O início da narrativa
apresenta Fábio inserido no trabalho de recenseamento e fiscalização dos
seringais do coronel Francisco Moreira, viajando a bordo de batelões ao longo
dos rios. A partir da seção “D” desta primeira parte, a narrativa presente é
interrompida e conta-se a história pregressa de Fábio. No Crato, sua carreira
de seminarista determinada pelo pai é interrompida em virtude da rigorosa seca
do fim do século XIX. Ele tem, então, dezoito anos. Após esses esclarecimentos
sobre sua origem, aspectos culturais de seu ambiente familiar e sobre sua
decisão de abandonar o Ceará, a narrativa torna ao curso presente. Mais
adiante, ainda na segunda parte do romance, colhe-se uma sumarização do roteiro
de vida seguido por Fábio depois de abandonar o seminário e partir de sua
terra:
Fábio Moura
coletava observações curiosas, que lhe feriam a vida acidentada de vinte e dois
anos. Viera de longe, cortara os primórdios da educação seminária, palmeara
caminhos sertanejos, com aglomerações amontoadas de retirantes, hospedarias de
Fortaleza e Belém, cabeças-de-porco de Manaus, viagens em cargueiros do Lóide,
nos gaiolas, motores, batelões, canoas e ubás. Campos, terra firme, alagações,
águas cristalinas das chuvas, águas escuras do Machado e dos igarapés, águas
dos igapós e charcos, águas do Madeira.[182]
Ao
fim da segunda parte do romance, Fábio viaja de retorno ao Ceará, tendo
acumulado uma considerável experiência nos bamburrais através do trabalho de
recenseamento. Conhecera a realidade muitas vezes grotesca dos centros onde
famílias morriam à míngua atacadas pelas febres, permanecendo os corpos
abandonados nas barracas para banquete das varejeiras, mucuras e urubus;
acompanhara a saga de pioneiros no desbravamento das áreas inóspitas e admirava
os que se tornavam proprietários às custas do próprio suor; conhecera a selva além do registro nos livros
e, ao contrário do que lera sobre o seu adormecimento, descobrira que ela
jamais dormia; ouvira histórias escabrosas de crimes passionais e de vinganças
e histórias sobre extorsão, fuga e revolta nos seringais; acompanhara as
ingerências políticas abusivas dos coronéis no trato com os adversários e os
eleitores.
Em
sua terra, apercebe-se de que mesmo tendo ali nascido, cursado o seminário e
possuindo terras que lhe foram deixadas de herança para administrar, os
bamburrais o haviam seduzido e o chamavam de volta. Teria de cumprir a missão
de “[...] desbravar o Amazonas, incorporar os seringais ao movimento econômico
do Vale [...].”[183]
Imbuído dessa missão e também afetado pelo banzo da floresta, Fábio retorna
para, desta vez, instalar-se definitivamente. Casa-se com a filha de um
seringalista e com ela divide a abnegada dedicação à terra, fundando uma escola
que recebe gratuitamente os alunos. Só não consegue manter-se isolado do jogo
político local. O quadro em que o indivíduo se sente encurralado e é obrigado a
aderir às hostes políticas locais é reiterativo nas narrativas de Álvaro Maia.
Em Beiradão, ilustra-o a seguinte
passagem:
[...] A
politicagem era um retiário: os vencidos lhes caíam nas malhas, que se
apertavam mais e mais, até a asfixia e o estrangulamento. Improvisavam-se
imaginários crimes, perseguiam-nos em qualquer empresa que exercessem, demitidos
de funções públicas, caluniados na vida pública e privada, e, ao fim, não
escapavam de sovas e exílios disfarçados, impostos por implacáveis
perseguições. Não podiam resistir à debandada nas cidades às vinditas
tributárias e comerciais. Multiplicavam-se os impostos; executavam-se os
atrasados, em prazos sumários; as embarcações, por precaução, não lhes tocavam
nos portos. Nas vilas, se comerciantes, sofriam bloqueio oficial, e poucos lhes
compravam as mercadorias.
- O chefe não
quer!
Procuravam-nos
à noite, passando ao longe sem pagar as dívidas. Se residiam num seringal,
sofriam também feroz assédio. O camarada resistia algum tempo, mas não poderia
ficar nesse crescente prejuízo e cedia. Transferia-se ao partido situacionista,
assinando-lhe uma ficha, e tudo se modificava. Impostos reduzidos, taxações
desclassificadas, recomendações ao coletor, silêncio ou elogios nos jornais.
Perdia as fumaças de rebeldia, calava-se rendendo graças por não ser surrado ou
expulso de sua propriedade.[184]
Fábio
mantém seu seringal, procurando não criar desafetos. Para tanto, equilibra-se
entre a vida de pequeno proprietário rural e a execução de algumas funções
públicas que as relações políticas lhe impõem e não lhe é conveniente recusar.
O seu entendimento sobre a distorção da política, a politicagem, no entanto,
está estabelecido: “[...] Servia-a para servir a amigos; suportava-a para não
querer parecer melhor que os outros [...].”[185]
Fechando os olhos para as hipocrisias políticas, vai tocando sua pequena
propriedade. A missão de educar os filhos preocupa-o mais que a obtenção de
lucros. Com a pouca produção de borracha, cobre as despesas essenciais, o que
demonstra lhe bastar, apesar das críticas feitas por Segadais e Padre Silveira,
apontando sua falta de ambição.
A
feição diferenciada de seringalista apresentada por Fábio é destacada
ironicamente pelo narrador que o qualifica com jeito de pai de santo ao invés
de comerciante. Seu procedimento de receber todos que lhe batem à porta,
corrigindo contas, lendo e respondendo cartas e ouvindo histórias, dá-lhe ares
de conselheiro.
Precavendo-se
contra tempos difíceis, Fábio constrói um pomar em que mistura espécies locais
às do Pará e Nordeste e completa a sua defesa econômica com um pequeno rebanho.
Nesta fase em que seu seringal prospera, surge uma epidemia de varíola nos
seringais, levando-o a enfrentá-la com a família. Com a atenuante de já terem
ele e a mulher apanhado a doença quando crianças, conseguem isolar os filhos e
prestam auxílio aos enfermos. À epidemia, sucede uma outra calamidade: a
economia da borracha entra em crise devido às plantações no Oriente. Contudo,
Fábio e outros pequenos proprietários unem-se para enfrentar a crise,
recorrendo às alternativas de sustentação econômica que haviam criado. Já
“[...] os grandes seringalistas não se haviam preocupado com a lavoura e a
pecuária: importavam sempre, porque a borracha dava para tudo [...].”[186]
A lição tirada da crise é o endividamento e a ruína dos grandes proprietários,
que sofrem também a pressão dos seringueiros, os quais ameaçam revoltar-se
devido à suspensão de fornecimento de mercadorias. Inicia-se o êxodo de
seringueiros principalmente nas regiões de seringais mais ricos, os dos rios do
Alto: Machado, Jamari e Preto. Nos seringais mais pobres, dos beiradões, onde
os seringueiros haviam feito roças, há uma tendência a permanecerem na terra
apesar da crise. O aventureiro, como Segadais, novamente se prepara para
partir, desta vez, tangido pela falta de perspectiva na terra onde buscava
recursos de forma imediatista: “[...] ninguém tinha a loucura de morrer sem
proteção, sem amparo, sem financiamento, num Vale que retornava às condições
primitivas do descobrimento [...].[187]
O romance acentua os posicionamentos opostos de Segadais e de Fábio no momento
da crise, determinando o espírito arrivista de um e os princípios idealistas do
outro:
Fábio amava as
florestas e as águas. Alguém teria de ficar, porque aquele mundo verde não
desapareceria, somente porque diminuía o preço de um produto. Outros produtos
existiriam; outras explorações teriam de nascer; agitando indústrias e
industriais. O futuro não seria para daqui a cem anos; era um futuro que se
desenhava bem perto, tecido no presente. A crise parecia uma seca; voltaria o
inverno nordestino, limpando o horizonte. Regressariam os fugitivos e
encontrariam de pé, embora alquebrados, os vultos que não se arredaram dos
portos bombardeados, como alavancas de resistência. O comerciante não é o homem
do imediatismo, mas um idealista na ação que desenvolve. Nem todos se esforçam
somente para ganhar dinheiro: abrem o caminho, como pioneiros, e milhares
marcharão cantando [...].[188]
Temperamentos
opostos têm também os seringueiros dos rios do Alto e os dos beiradões na
relação com os patrões durante a crise. O primeiro caso é ilustrado na situação
da personagem Coronel Moreira, o rico potentado que perde o poder e o respeito
que impunha aos seus trabalhadores. No segundo caso, está o seringalista
representado pela personagem Fábio, que consegue manter uma relação cordial com
seus trabalhadores. Enquanto Fábio precisa intervir como mediador junto aos
seringueiros do coronel para que não tomem de assalto o seringal deste,
atentando contra sua vida; com os seus seringueiros, pode conversar
francamente, revelando-lhes a gravidade da situação “[...] porque ali tudo era
de todos [...].”[189]
Assim, os seus seringueiros, ao invés de exigirem pagamento e abandonarem o
seringal, decidem permanecer ali mesmo, como o patrão, enfrentando os tempos
difíceis. Quando a escassez de mercadorias se acentua, dificultando a obtenção
de produtos básicos para a sobrevivência, o aparecimento do regatão se registra
como uma tábua de salvação para os náufragos que decidiram permanecer. Desse
modo, o narrador destaca: “[...] fugiram os aviadores, os seringalistas, mas,
na hora difícil, o tão amaldiçoado regatão vinha salvá-los [...]”.[190]
Na consideração do narrador, essa era a verdadeira fase dos regatões, pois
poderiam negociar com os pequenos seringalistas sem serem perseguidos e sem
sofrerem fiscalização. Para o narrador, portanto, os regatões, através de seu
comércio ambulante, prestaram uma ajuda aos hinterlandinos, evitando a morte
por doenças, uma vez que não lhes chegava qualquer assistência oficial.
O
enredo do romance prossegue arrolando as conseqüências da crise na capital e
nas regiões dos seringais de que são significativas as seguintes passagens:
Na capital em
torpor, sacudida pelo temporal, desapareceram os dias faustosos da queima de
cédulas para acender cigarros: os comerciantes lutavam, desesperados de receber
os saldos espalhados no interior, pela simples razão de que, sem mercadorias,
esse interior não poderia lutar. As sedes municipais eram uma cópia empobrecida
da capital.[191]
..............................................................................................................................
[...]
Seringais, campos, embarcações, casas-de-farinha, engenhocas respondiam pelas
dívidas; agricultores perdiam as posses, onde lutaram anos e anos, tentativas
de pequenas indústrias caseiras cediam aos impostos excessivos[...]
[...]
Choviam as
execuções criminosas, sem uma providência aleatória e salvadora. Seringais
tornavam a florestas, sem atividade lucrativa, pois não encontravam novos
exploradores; barracões desabavam, barracas emaranhavam-se nas trepadeiras; a
capoeira dominava. Surgia o imprevisível: seringalistas, outrora prósperos,
pediam um emprego aos mais abastados, ou ocupavam um pedaço alagadiço da ilha
para defender a vida – derrubar a mata, plantar roçados...[192]
Durante
esse período, Fábio permanece em seu sítio seringal, sobrevivendo às custas de
sua cautela. À insistência de Padre Silveira de que deve abandonar o Amazonas e
voltar ao Ceará para dar educação completa aos filhos, argumenta a lealdade
para com os que também decidiram ficar, seguindo seu exemplo. Partir,
deixando-os sós na dificuldade seria, para ele, traição. Diante de um convite
que recebe para o filho estudar num seminário, Fábio titubeia ao refletir que o
menino, acostumado a viver nas brenhas, não se amoldaria à missão eclesiástica,
não possuiria a vocação necessária para ser um sacerdote virtuoso. Ademais, o
próprio filho resiste a seguir esse caminho. O ambiente amazônico onde fora
criado é tido como o principal fator negativo para a sua conversão. Entretanto,
Fábio deseja que o filho tenha uma educação integral e por isso o menino segue
com uma tia para a capital a fim de realizar os estudos que apenas iniciara com
as lições primárias da mãe. Posteriormente, Fábio também se questiona sobre sua
própria partida para a cidade e, consultando a esposa, obtém dela a mesma
convicção que sempre tiveram de permanecer no beiradão até o fim de suas vidas.
Quase
ao fim do romance, o beiradão começa a dar sinais de recuperação da crise,
atestando um incipiente restabelecimento. Não é mais a extração da riqueza
encontrada abundantemente na natureza, especialmente o látex, que anuncia o
soerguimento:
O beiradão
povoava-se, povoaram-se as terras marginais às linhas telegráficas. Seringais
em abandono começaram a ser procurados. Velhos seringueiros, fatigados de
esforços andarilheiros, apelavam também para a agricultura; tabaquistas e
farinheiros, desiludiam-se das estradas e se aboletavam nas terras férteis das
ilhas vizinhas. Notava-se diferença entre o ilheiro, independente em suas roças
e bananais, e o seringueiro, vergado ao encarceramento das matas.[193]
Seguindo
essa perspectiva de restabelecimento, o sítio de Fábio também atinge uma
prosperidade, atestando que “[...] havia tranqüilidade na pobreza, a fartura na
relatividade, a comprovação da vida no interior verde, afastando o tabu da vida
unicamente apegada ao extrativismo [...]”.[194]
As ações de Fábio na administração de sua propriedade comprovam ainda um
planejamento racional, à medida que não somente busca outras alternativas
econômicas, além da monocultura, mas também se previne de surpresas que possam
ser causadas pelos acidentes naturais próprios da estrutura geológica da
região, plantando cacauais em restingas altas, longe, portanto, das margens
afetadas pelo fenômeno das terras caídas.
Redenção
é a palavra que resume o desfecho do romance, haja vista que a sociedade
ressurgida após a crise está “galvanizada pelo sofrimento.” É também uma
sociedade com a marca da hibridação, um Amazonas “cearensizado” cujo casal
representativo é Fábio e sua esposa.
Beiradão é um romance que abrange
integralmente o ciclo econômico da borracha, da fase áurea à derrocada. Como as
demais ficções do ciclo, aponta a ilusão dos seringueiros com o processo de
extração do látex, que os leva muitas vezes a consumir a vida nas estradas de
corte e depois dissipar o saldo que por ventura tirem com gastos fúteis na
cidade, deixando escapar a possibilidade de retornarem a sua terra; o
endividamento inevitável com as despesas de viagem, instrumentos de trabalho e
alimentação, comprometendo a possibilidade de saldo no primeiro ano de
produção; a dura realidade dos centros, onde encontram a morte pelas febres; a
disputa pelo sexo feminino; o bloqueio tropical, expressão utilizada pelo
narrador para caracterizar a impossibilidade de fuga dos seringais, seja pelas
barreiras impostas pelo ambiente, seja pelo consórcio dos patrões que se
irmanavam na perseguição e captura dos foragidos com o apoio das autoridades
locais; e, conseqüente ao poder conjugado dos seringalistas, o desamparo e a
submissão do seringueiro que “[...] sente medo de autoridade. Olha-a, como quem
olha uma fera, abestalhado e sem arma [...].”[195]
Com isto, no romance, confirma-se “o
mando indiscutível dos patrões”, especialmente aqueles que se estabeleceram nos
rios Jamari, Machado e afluentes do rio Madeira. A luta dos exploradores contra
os índios é, por fim, outro aspecto reiterado em Beiradão.
Entretanto,
ao mesmo tempo em que o romance aborda os aspectos convencionais em torno do
ciclo, renova algumas das suas tradicionais abordagens literárias. Assim sendo,
uma das principais inovações apresentadas é o rompimento do anátema que recai
sobre o seringalista. A personagem Fábio sintetiza esse rompimento.
Comparando-a com modelos de seringalistas rudes, sem visão e tacanhos, criados
em outras obras, é possível perceber o quanto diferem. Divergindo mesmo do tipo
de explorador que caracterizou o ciclo, Fábio não almeja tão somente obter
lucro da terra, mas ocupá-la, implantando uma forma de economia duradoura, numa
palavra, seu objetivo é criar raízes.
A
formação que irá possibilitar o perfil diferenciado à personagem Fábio é também
oposta à das demais personagens de seringalistas. Antes de se tornar um
imigrante banido pela seca, foi seminarista o que lhe possibilitou se instruir:
“Fábio deixara o internato em tempos rigorosos de catecismo e latim. Lia os
seus clássicos, abeberava-se em História e Filosofia [...].”[196]
Mais
do que um bom seringalista, a personagem Fábio encarna o pioneiro que se tornou
proprietário, mantendo uma posição arrazoada sobre a exploração da terra,
trabalhando não apenas para extrair benefícios num momento presente, mas
fazendo uma previsão para os dias futuros, da qual proprietários apoiados na
monocultura chegam a fazer pouco caso: “[...] Fábio esquematizou a sua
resistência contra o temporal que se aproximava, - plantações de café, cacau,
árvores frutíferas e roças, criação de gado, suínos e galinhas. Alguns,
julgando-se mais atilados, gracejavam dessas atividades sertanejas – seria
melhor enveredar pelo Machado, arrendar seringais e voltar rico [...].[197]
Fábio
também possui a faceta de abnegado, enfatizada por sua postura de estar
preocupado em dar ganho aos outros ao invés de ganhar, de não saber cobrar nem
valorizar os seus próprios esforços. O idealismo que manifesta, por sua vez, é
efusivamente otimista como quando fala aos seus seringueiros, pedindo-lhes
paciência nos momentos de crise: “- Devem ter calma e esperança. Daqui a 50
anos, tudo mudará. Preparam esse tempo para nossos filhos, que terão liberdade,
assistência médica, escolas.”[198]
Essa percepção da personagem harmoniza-se com o pensamento político de Álvaro
Maia, o que pode ser observado já através do discurso intitulado “Canção de fé
e esperança”, proferido em 1923, ensejado pela data comemorativa do centenário
da adesão do Amazonas à Independência Nacional, ocorrida em 1823. Referindo-se
ao amor que devota ao Estado, declara:
[...] É esse
amor que nos faz prever o Amazonas de dois mil e vinte e três, como uma pátria
em que milhares de homens, unidos pelo mesmo afeto, celebram uma nova era,
sustentando, por seu poder financeiro, uma potência econômica formidável, cujas
cariátides serão as fábricas plantadas nos campos, os armazéns com
incalculáveis valores, as cidades debruçadas à margem dos rios nervosos e
barrentos. As estradas de ferro comunicarão os afluentes entre si e porão em contato os reservatórios de
riquezas, que se prolongam do Rio Branco aos campos-gerais do Madeira [...][199]
As
críticas que Álvaro Maia empreende no mesmo discurso à falta de um trabalho
efetivo de cultivo da terra são assinaladas também pelo narrador do romance ao
destacar uma “[...] terra em que não se plantava, não se criava, importando-se
sempre e destruindo as reservas naturais.”[200]
Outros pontos de confluência que também podemos notar é a exaltação do
nordestino, o “nobre bandeirante do nordeste”, apontado como herói do
desbravamento, e a denúncia do descaso governamental em relação ao Estado.
Tanto a crítica quanto a exaltação presentes no discurso justificam plenamente
a arquitetura de uma personagem como Fábio, um nordestino que demonstra amor à
terra para a qual se transplantou, que constrói e administra sua propriedade
com base na racionalidade, que ao invés de inimigo se transforma num parceiro
daqueles que para ele trabalham. A idéia da cooperação entre patrões e
empregados que podemos depreender da postura de Fábio, patrão que se solidariza
com seus trabalhadores, está em afinação com a política trabalhista do Estado
Novo que, como lembra Santos, postulava “a ausência dos conflitos entre patrões
e trabalhadores [...].”[201]
Figurando
sempre como oponente, o seringalista não teve na ficção do ciclo o status de
protagonista. A nomeação de protagonista em relação à personagem Fábio deve ser
estabelecida a partir de algumas considerações. Ela pode ser tomada como uma
figura central por ter destaque em relação às demais personagens, especialmente
no que diz respeito à história principal, sendo Beiradão uma narrativa que se divide em muitas histórias paralelas.
No que diz respeito ao herói como um ser problemático que enfrenta adversidades
e busca entender-se no mundo ou numa sociedade de que faz parte, Fábio
representa uma categoria e não um ser individualizado, pois não enfrenta situações
que o ponham em choque com forças opostas as suas e não ostenta maiores
transformações de sua personalidade. Sendo assim, não tem oponentes mas
contrapontos como Segadais e Padre Silveira, personagens com posturas
diferentes da sua, mas com as quais não entra em conflito. Mesmo em relação aos
seringalistas de papel oposto ao seu, não se cria um antagonismo, uma vez que
admira sua função de desbravadores. Em síntese, Fábio é um modelo ideal de
seringalista em contraponto a um modelo errôneo. Desde o princípio do romance,
sua personalidade já está traçada para atender a esse modelo.
A
criação de Fábio como um modelo ideal de seringalista não leva a uma tendência
generalizada da bonomia de todos os seringalistas apresentados no romance. O
autor não assume uma defesa intransigente do seringalista, propõe uma faceta
alternativa para o patrão dos seringais.
A
indicação dada no romance de que o seringalista rude, sem visão e planejamento,
é responsável pelo fracasso do ciclo econômico, torna claro o papel alternativo
desempenhado por Fábio e está exemplificada na personagem do coronel Moreira
endividando-se e não prevendo a crise ou em Valério Liras,
[...]
exportador de toneladas de borracha e centenas de hectolitros de castanha, sem
uma escola, uma assistência médica, sem educar um filho de seringueiro.
Viagens, luxo, larguezas, mesa com vinhos, e nada para os pobres. Somente sol,
frio, nudez, barraca escura. Lendo pouco, tivera coragem, faro canino para
negócios e pouco ligava à defesa da terra. Não incentivava roçados,
agricultura, porque lhe prejudicava os lucros nas compras de farinha do Pará.
Dava-lhe o dinheiro influência política, e as autoridades locais se curvavam
aos seus arrotos de mandão.[202]
O
seringalista cruel não desaparece no romance e o seu perfil vingativo e por
vezes sádico é ressaltado em tipos como Arsênico, que queima vivo o seringueiro
causador de prejuízo, ou de caciques políticos como o coronel Moreira, capaz de
pôr em prática vingança sumária contra os seus desafetos. Na posição posta no
romance sobre o seringalista, há distinção entre o mau e o bom, evitando generalização, conforme se nota neste diálogo
entre Fábio e Padre Silveira, em que o primeiro busca um consenso e o segundo
não acredita numa recompensa à postura justa do explorador:
- Quer dizer
que você estabelece diferenças entre eles?
- Sim, como em
todos os períodos de conquista. Bons e maus latifundiários, bons e maus
pioneiros e seringueiros. Os pioneiros das selvas, vamos dizer assim, impunham
a sua vontade com um 44 à ilharga. Se fraquejassem, estariam mortos. Rezavam a
Deus e levavam o demônio por dentro. Sorriam uns para os outros, pensando que
tinham uma quicé à ilharga. Também se arrojavam às cachoeiras para salvar um
trabalhador, expondo a própria vida.[203]
Conquanto
o romance esteja voltado para a temática do ciclo, notamos uma descentralização
dos tópicos tornados exclusivos em outras obras. O mapeamento detalhado do
dia-a-dia do seringal, com suas situações peculiares, sofre um desvio que
favorece um leque maior de sub-temas da vida interiorana. As relações políticas
figuram como um desses acréscimos, fornecendo uma visão às vezes irônica como a
dos eleitores famintos, do período da crise, que prometem votos a candidatos
adversários a fim de melhor lucrarem com o banquete oferecido em virtude da
eleição:
- Dizem que
vai haver carne na eleição de outubro. Vem um homem oferecer boi e vinho pra
votar no doutor de Manaus, que fala bonito. Mas o coronel tem espia. A gente
não diz nada, vota no coronel, que é de casa e come a carne dos dois lados. [204]
As
críticas que o autor faz no romance em relação ao governo são fruto de sua
atividade política. Mesmo sendo um político conservador, ligado ao Estado Novo, Álvaro Maia não contém
o tom de denúncia, apontando o descaso e a falta de assistência governamental.
É preciso destacar, no entanto, que o romance foi escrito em 1958, no período
em que esteve desligado dos cargos públicos, retirado em sua residência no
seringal “Goiabal” e que como político enfrentou denúncias em relação ao
recrutamento e assistência aos nordestinos na campanha da batalha da borracha,
realizada durante sua interventoria, sob os desígnios da política do Estado
Novo. O episódio é comentado por Santos:
Após 1946,
proliferaram as críticas dos adversários de Álvaro Maia, no Diário da Tarde, formuladas contra a
“batalha da borracha” e a desorganização da imigração de nordestinos para os
seringais. Nesse empreendimento, a interventoria de Álvaro Maia consumiu
enormes esforços, o que acarretou um desgaste político ao Partido Social
Democrático e seus líderes. O esquema institucional montado durante o Estado
Novo para implementar a “batalha da borracha”, recebeu denúncias na imprensa
local e nacional em decorrência de sua improvisação, carência organizacional e desordem
administrativa. [205]
A
utilização de motivos à margem dos tópicos abordados na ficção da borracha,
empreendida por Álvaro Maia em Beiradão,
também se origina do viés político. As narrativas colhidas nos repertórios
nordestino e caboclo, propiciadoras do conjunto de histórias paralelas ao
enredo principal do romance, e que, nas palavras de André Araújo, dão a
conhecer a “[...] gleba, a estrada, a dietética, os hábitos, o lendário, o
místico, a vida social, a criminologia, as revoltas, as fugas de dentro das
florestas, a fé, o amor, as técnicas, o trabalho, a medicina caseira, o
caçador, o regatão, o banditismo, a politicagem [...]”, [206] configuram o enfoque que o autor dá aos
textos produzidos durante o afastamento da política e que já estava caracterizado
em seus discursos, artigos e conferências publicados na década de 1920, os
quais tinham ressonância no movimento denominado glebarismo, através do qual eram defendidas idéias regionalistas.[207]
Desse
modo, Álvaro Maia apresenta-se, desde o início de sua carreira política e de
sua atividade no magistério, como um defensor da glória dos heróis do passado,
o que se constata em sua conferência “Pela glória de Ajuricaba” na qual eleva
essa personagem histórica a símbolo do Amazonas. No artigo intitulado “O elogio
do caboclo”, Maia procura, por sua vez, desmistificar o perfil negativo em
relação a esse ser, acusado de indolência e covardia, e o aponta como o guia
ideal dos pioneiros e desbravadores, estes também alçados à categoria de
heróis:
Esses homens
rudes, que sentem no espírito a adustão de seus sertões e a agitação de seus
males, transmudam-se em valentes, ao contato sarcástico dos caboclos, desvendam
o labirinto de nossas terras e, no momento preciso, se metamorfoseiam em
soldados para morrer ou vencer, cantando pelo orgulho de sua pátria. Velos-eis,
em Porto-Acre, pelejadores em nome do Amazonas e do Brasil, contra um exército,
bater uma nação: velos-eis enfrentar, em fronteiras indefesas, invasores
imprudentes; velos-eis no Rio Branco e no Madeira, no Javari e no Negro, como
sentinelas, conservando no coração o culto da terra e da gente [...][208]
Além
do enfoque no elemento humano que, a exemplo dos textos mencionados, também se dá em Beiradão, o romance apresenta uma percepção do ambiente amazônico
distinta daquela das obras da primeira fase do ciclo ficcional. Ainda que Beiradão evoque o determinismo do meio
em personagens como Padre Silveira, o qual tem o comportamento alterado pelo
ambiente amazônico, levando-o à concupiscência, a natureza não é retratada pelo
estigma do “infernismo” que caracterizou, segundo Mário Ypiranga Monteiro, a
produção ficcional em torno do “ciclo da borracha”. Importa mencionar que
Álvaro Maia reprovou, em carta aberta ao presidente Washington Luís sob o
título “Em Nome dos Amazônidas”, a denominação “inferno verde”, estampada no
livro de Alberto Rangel e propôs, ao invés, a expressão “Paraíso verde”.
Os
desequilíbrios no ambiente expressos em Beiradão
são dados como resultado do processo de desbravamento tal se pode notar por
esta passagem do romance:
Redimiam-se os
seringalistas da triste fama de criminosos, explicável pela violência dos
pioneiros, na arrancada para vencer o índio e dominar o desconhecido, uma
pequena parte desse desconhecido [...] A conquista prosseguia em capítulos
verídicos, inscrevendo os nomes daqueles homens audazes entre os que empurraram
o Amazonas para a frente, espalhando barracas e caminhos, cadáveres e heroísmos
nos meridianos coloniais [...][209]
A
justificativa apresentada no romance de que a violência e a espoliação são
conseqüências de uma “sociedade em formação” afina-se com a concepção do
historiador amazonense Arthur Cezar Ferreira Reis, para quem esses mesmos
fatores são resultados naturais de um processo de colonização ou de um “meio-sociedade
em formação”. A redenção é também destacada pelo historiador: “[...] Os anos de
rigor, da fase de decadência dos
seringais, ferindo seringalistas, aviadores e seringueiros, tiraram-lhes muito
daquele sentimento de voracidade, de apetite insofrido que os levou àqueles
excessos por demais lamentáveis.”[210]
Nesse
diapasão, os “pecadilhos” de Padre Silveira são postos como perdoáveis porque
ele realiza a tarefa pioneira de oferecer assistência religiosa aos
interioranos. Padre Silveira e Fábio são dois exemplos de que a carreira
sacerdotal sofre um abalo numa natureza virgem, o primeiro, tendo chegado
ordenado ao Amazonas, exerce o sacerdócio pela metade e o segundo, ao se
deparar novamente com o seminário na volta ao Ceará, perde a vocação em virtude
da estada nos bamburrais amazônicos.
A
natureza em Beiradão seduz e deixa na
alma do pioneiro uma marca indelével: “[...] Estas margens, estes aguaceiros,
estes sofrimentos gravam-se na gente para sempre e cozinham os dias em saudade
permanente.”[211] No
romance, a atração exercida pelo meio ocorre de forma extensiva, atingindo o
arrivista e o abnegado.
O
que motivou a diversificação na abordagem de Beiradão quanto ao papel do seringalista foi menos um diálogo com
os ficcionistas da borracha do que uma proposta política de alternativa
econômica para a região. Durante a década de 1930, quando governava em sua
primeira interventoria, Álvaro Maia já pedia providências ao governo federal
para minimizar a crise e sugeria o amparo à lavoura, através da divisão de terras
pertencentes ao Estado entre pequenos proprietários, como forma de conter o
êxodo rural ocorrido com a desvalorização da borracha. Por outro lado, Santos
observa que, como interventor, Maia não abandona a idéia da valorização da
borracha e que tanto essa valorização quanto o apelo à implantação de um meio
econômico alternativo atendiam aos interesses das classes conservadoras
amazonenses e das populações interioranas.[212]
A cooperação entre o proprietário e o extrator, a necessidade de fixação do
homem à terra que marcam o procedimento da personagem Fábio, em Beiradão, faziam parte do programa populista desenvolvido por Vargas e
igualmente assumido por Álvaro Maia.
Vemos
que a percepção do escritor no romance pouco diverge dos postulados políticos
que defendeu toda a vida, que podem ser mapeados em seus artigos, discursos e
conferências, mesmo tendo o romance sido escrito durante a fase de afastamento
da política.
O amante das amazonas: o ciclo sob o olhar de um analista-autor
Rogel
Samuel, autor de O amante das amazonas,
agrega duas características relevantes para nosso estudo sobre as obras
literárias do “ciclo da borracha”. A primeira delas é a experiência que, em seu
caso, não é direta, vem de reminiscências legadas pela memória de antepassados,
como o avô, um alsaciano enriquecido pelos lucros da borracha amazônica, no
início do século XX. A segunda característica motivadora do estudo desse
romance surge do fato de o autor ser analista literário, atividade resultante
de sua carreira no magistério.[213]
Entendemos
ser a atividade de analista empreendida por Rogel Samuel a promotora da
diversificação de abordagem do romance O
amante das amazonas. Não o nomeamos, contudo, um escritor-crítico, conforme
concebe Leyla Perrone-Moisés[214]
por entendermos que o autor exerce a atividade de analista paralelamente a de
escritor e por considerarmos que tanto a sua produção teórica quanto a sua
produção ficcional não alcançaram a extensão e o nível de sistematização
necessários à qualificação de escritor-crítico, como o estabelece o estudo de
Perrone-Moisés. Uma vez que Samuel não pratica a análise do texto ficcional
como corolário de sua atividade de escritor, podemos considerar o oposto: que
sua atividade de professor e analista possibilitou a expressão de ficcionista,
expressão essa que marcará a renovação da terceira fase ficcional do ciclo.
O amante das Amazonas realiza a
brevidade que, segundo lembra o narrador de um romance de Ítalo Calvino, é
necessária aos romances modernos: “[...] Hoje em dia, escrever romances longos
é um contra-senso: a dimensão do tempo foi estilhaçada, não conseguimos viver
nem pensar senão em fragmentos de tempo que se afastam, seguindo cada qual sua
própria trajetória e logo desaparecem [...].”[215]
Dessa forma, o romance se divide em 23 capítulos curtos: Viagem, Palácio,
Numas, Paxiúba, Ferreira, Júlia, Desaparece, Ratos, Frei Lothar, Perdida,
Ribamar, Manaus, Conversas, O leque, A livraria, Benito, Rua das Flores,
Encontro, Mistério, Noite, O pórtico, Jornal, Fim. São capítulos que, por sua vez,
não estabelecem uma continuidade linear do enredo, alguns deles basicamente
introduzem personagens, o que reforça a característica fragmentária da
narrativa.
Fragmentado
é ainda o narrador do romance. Divide-se entre primeira e terceira pessoas. Em
primeira pessoa, narra Ribamar, retirante do povoado de Patos, em Pernambuco,
vindo para a Amazônia em 1897. Já a voz que narra alternando a primeira e
terceira pessoas tece comentários, dialoga com o leitor, insere digressões e se
assume como ser ficcional: “[...]sei, e de antemão o digo, que esta é apenas
uma obra de ficção, e portanto mentirosa, dentre as várias que há na literatura
amazonense, e espere o leitor e a leitora o surpreender-se como, apesar disso,
o fio do destino do que vai descobrir é correto. Todos os fatos, aqui expostos,
foram realidades notáveis e aconteceram realmente para a minha imaginação
[...].”[216]
As
narrações em primeira e terceira pessoas, portanto, não se apresentam como
instâncias independentes. Por vezes, a forma indireta da terceira pessoa se
personaliza. Expressa-o o fato de que o romance se inicia com a narração em
primeira pessoa da personagem Ribamar para, posteriormente, no capítulo dez,
ser atribuída ao narrador em terceira pessoa, que destaca: “O Manixi naquela
época agonizava, improdutivo. Fazia dois anos que o próprio Ferreira não
aparecia, e a sede, depois da morte do Capitão João Beleza, ficara sob as
ordens de um Ribamar (d’Aguirre) de Souza, oriundo de Patos, Pernambuco,
conforme o primeiro capítulo desta minha narrativa.”[217]
Depreendemos
que a impessoalidade da terceira pessoa transforma-se em diversos momentos da
narrativa em uma voz paralela à do narrador-personagem Ribamar. Essa outra voz
que também fala em primeira pessoa (minha narrativa/Eu, o narrador) e se assume
como narrador, concomitantemente cria uma noção de veracidade extratextual,
entretanto, há aí também um artifício ficcional: “[...] do que pude conseguir
de jornais da época e de cartas de familiares, o desaparecimento de Zequinha
Batelão nas margens do Igarapé do Inferno se deu em janeiro de 1912. Não fosse
essa uma obra de ficção e poderia citar, em notas de pé de página, as fontes de
onde obtive tal informação [...]”[218]
A
abertura do segundo capítulo do romance apresenta-se como um dos momentos em
que narrador-personagem e narrador analista se fundem. Essa passagem norteia a
própria leitura que devemos fazer do romance, pois a ficção se auto-define:
[...] esta
narrativa-paródia de romance histórico que define com boa precisão esta minha
tardia confissão - vai-lhe revelar a vida tão surpreendente de Ribamar de
Souza, aquele adolescente que eu era aparecido num inesperado dia de inverno da
Amazônia dentro da chuva compacta de um ostinato extremamente percussivo em
comandos de improvisação de uma partitura imaginária, ecológica, de acordes
politonais sobre o que sentado estava num banco de madeira no alpendre do
tapiri ao som do suporte de compassos 5/4 do Igarapé do Inferno, que sai no
Igarapé Bom Jardim que sai no Rio Jordão, que sai no Rio Tarauacá, que sai no
Rio Juruá, afluente do Rio Amazonas, o Solimões, aonde estamos retornando.[219]
O
entendimento do caráter parodístico atribuído pelo narrador ao romance requer
algumas considerações sobre a especificidade desse tipo de discurso. Em seu
estudo acerca da tipologia do discurso na prosa, Bakhtin[220]
argumenta que o procedimento parodístico do discurso se caracteriza não somente
por uma remissão ao objeto referencial da fala, como também a um segundo
contexto, um ato de fala de outro emissor, sendo por isso um discurso
duplamente orientado ou de duas vozes. Bakhtin estabelece também a diferença
entre a paródia e a imitação, fazendo notar que enquanto aquela cria um
antagonismo em relação à voz na qual se aloja, essa torna própria a palavra do
outro, fundindo-se a ela. Outra peculiaridade que deve ser considerada, segundo
o autor, é que a fala parodiada é apenas subentendida. Bakhtin destaca que o
campo de possibilidades do discurso parodístico é bastante amplo, pode lançar
mão de um estilo enquanto estilo, de modos típicos de pensar social ou
individualmente. A construção parodística pode se limitar a níveis da
superfície verbal ou atingir níveis mais profundos. O uso parodístico da
palavra do outro, lembra o autor, não se dá apenas no campo literário, ele ocorre
sempre que há intenção de pôr um acento irônico nas palavras de um outro
emissor, criando uma ambivalência em relação a essas palavras: “[...] Em nossa
fala cotidiana, é extremamente comum este uso das palavras do outro,
especialmente no diálogo em que, freqüentemente um interlocutor repete de modo
textual a afirmação de outro interlocutor, investindo-a de outra intenção e
enunciando-a a seu próprio modo: com uma expressão de dúvida, de indignação, de
ironia, de zombaria, de troça ou algo semelhante.”[221]
Sendo
O amante das amazonas definido por
seu narrador como uma paródia de romance histórico, é necessário chamar a
atenção para o fato de que a maioria da produção ficcional sobre o ciclo pode
ser considerada de enfoque histórico, haja vista essa ficção ter abordado
aspectos em consonância com os dados históricos sobre o evento. Desse modo, os
principais fatores que envolvem a história econômica do ciclo são retomados
pelos ficcionistas. A ficção geralmente faz recortes desses fatores através de
cenas que são comuns a muitas obras. O processo de transumância do nordestino,
compreendendo os fatos antecedentes, como o sofrimento causado pela seca, a
falta de perspectiva na terra natal até a decisão da partida, enfrentando a
longa jornada do Nordeste ao Norte, atinge o cerne na ficção através da
descrição da viagem. Nessa descrição, geralmente são enfocados o estado de
submissão dos recrutados ao seringal, as condições do transporte onde são
tratados como passageiros de terceira categoria, sem direito a dignas condições
de higiene e à privacidade.
Em
O amante das amazonas, as descrições
do barco e da viagem recebem um novo tratamento por meio de uma construção
parodística que acrescenta um tom irônico ao tradicional tom de denúncia de
outras obras:
[...] Navio
dentro do qual não cabia mais único engradado de porcos, alojando aquela horda
que fedia podre, de suor, esterco de gado e urina – redes se entrecruzando e
houve roubo, bebedeira, estupro, briga, facada e morte – um pai esfolou um
macho surpreendido com sua filha num vão de esterco; outro, bêbado, mijava ali
no chão enquanto escorria até onde dormiam muitos, no chão; sobre um garajau de
galinhas um homem sacou de si e se aliviou sob a luz de um candeeiro amarelo
cheio de moscas. Era um soldado.
Passamos do
Farol de Acaraú ainda dentro daquele porão e paramos em Amarração para largar
um cadáver, o preso e dois passageiros cobertos de varíola. Mas não tocamos em
Tutóia, aportando em São Luís onde o Alfredo
foi dentro d’água cercado por botes, catraias e se transformou em gigantesca fera [sic] flutuante, lá subindo
todos para bordo os vendedores de camarão frito, doces e frutas. Pois não foi
uma viagem maravilhosa? [...][222]
A
linguagem em que a descrição é posta formula-se através de uma sintaxe não
convencional que inclui cortes de conectivos, gerando um caráter sintético
peculiar à linguagem coloquial (aquela horda que fedia podre). A sintaxe do
texto também apresenta uma disposição de orações que possibilita a interposição
de informações e torna significativa a desordem espacial no barco e as relações
conturbadas entre os passageiros (redes se entrecruzando e houve roubo,
bebedeira, estupro, briga, facada e morte). A escolha de verbos e substantivo
característicos da linguagem chula (esfolar, mijar, macho) demonstra a
aplicação dos níveis de linguagem, o que permite que a condição dos passageiros
se expresse com mais rudeza. Com a frase interrogativa no final do trecho, o
sentido irônico se estabelece.
Um
dos pontos mais marcantes nos estudos históricos e na ficção do ciclo, o
elemento que se caracteriza como o explorador, é retomado em O amante das amazonas sob um olhar
distinto daquele que se convencionou na maioria das obras ficcionais. O que se
torna central no romance não é a abordagem maniqueísta em torno desse elemento,
mas sua relação com um processo econômico mais abrangente do que a monocultura
local. No romance, a personagem Pierrre Bataillon, proprietário do seringal
Manixi, em nada se assemelha às tradicionais personagens de seringalistas. Divergindo
dessas personagens, Pierre representa uma linhagem “[...] nobre, neto de Duque
de Cellis, uma das mais nobres famílias de Espanha, que vinha da antiga Roma,
inteligente, culto, falando fluentemente várias línguas [...]”,[223]
vivendo como um “[...]fidalgo engastado na floresta, cercado de todo o luxo e
de muitos livros [...]”.[224]
Pierre não significa apenas o oposto do arrivista bronco enriquecido, seus
hábitos e o palácio que constrói no meio da selva sintetizam o aspecto voraz do
capital internacional e da cultura estrangeira, impondo sua hegemonia sobre a
cultura local através de uma ostentação delirante e esquizofrênica:
[...] O palácio era imagem em busca de sua
natureza profunda. Ali se dispunha de uma sala de música onde se ouvia
principalmente Beethoven, com um piano Pleyel, a vitrine onde Pierre Bataillon
ostentava sua coleção de violinos (o Guarnerius, o Begonzi, o Klotz, o
Vuillaume), as gravuras representando Viotti, Baillot, David, Kreuzer,
Vieuxtemps, Joachim; a máscara mortuária de Beethoven, laureado em bronze, de
Stiasny. A biblioteca, em que alguém uma noite leu em voz alta versos de
Lamartine. E salas e salas se interrogando para quê, salões e galerias e
cômodos se intercomunicando por portas sucessivas que se abriam em galerias e
corredores restritos, que se fechavam em si mesmos, ao som do piano de Pierre
Bataillon [...] no silêncio rigoroso do gabinete inglês; na dinâmica, na
morfologia prostituta do divã de Delanois; na unidade e variante elíptica do
canapé – e nos cipós, íris, cardos, insetos estilizados, poliformes,
incorporando-se aos móveis e às linhas dos painéis franceses num delírio
neo-rococó como não quis a natureza: estátuas sobre lambrequins, rocalhas e
rosáceas ecléticas, urnas nas cimalhas dos balcões simbolizando a energia, a
ontologia e o desejo do capitalismo de tudo consumir, de tudo gastar, de tudo
produzir, de tudo poupar e de tudo faltar e apropriar-se, transbordando e
abortando na loucura, na miséria e na morte – cariátides, capitéis, folhagens
da selva ...[...][225]
O
palácio, edifício “[...] encapsulado de civilização da humanidade européia
[...]”,[226]
localizado no meio da selva, opõe-se à moradia convencional do seringalista na
ficção, o barracão tosco, que se harmoniza com o caráter rude de seu
proprietário. Nas ficções do ciclo, a selva e a civilização sempre estiveram
separadas. Os coronéis seringalistas comandavam o seringal em sua moradia
improvisada na selva e construíam palacetes na cidade como forma de usufruírem
do luxo e ostentação proporcionados pelos lucros da borracha. O espaço da
cidade era adequado à fruição dos prazeres copiados à cultura européia,
representativos da Belle-époque:
palacetes art-nouveau, móveis
franceses e toda uma gama de objetos de usos variados, importados dos mercados
europeus.
As
duas faces do ciclo, civilização e mundo selvagem, não se apresentam
dicotomizadas em O amante das amazonas.
Civilização e selva se chocam, se confrontam e se mesclam. A obra faz a ligação
entre os opostos. Aquilo que a civilização significou em termos de progresso e
vida moderna se defronta com a força rústica da natureza. Num caminho de duas
mãos, a ostentação invade a floresta e a floresta invade a ostentação. O
tratamento parodístico dado ao romance se evidencia também por essa
confrontação de dois mundos antagônicos:
[...] No meio
da noite Pierre toca piano, lê, caminha dentro da casa do fim do mundo. As
noites são soturnas, lúgubres, envolvem o Palácio em demônios que saem da
escuridão. Pierre, indiferente, anda e seus passos se fazem ouvir ao longo a
galeria das portas e janelas. Ele contempla os quadros, segue a fileira das
janelas de folhas duplas fechadas até o chão, pesadas, almofadadas, bandeiras
guarnecidas de cortinados franzidos de filó. No galpão, o viveiro dos patos com
que se protege o Palácio de cobras, aranhas e escorpiões. A lâmina d’água tenta
impedir a invasão das formigas. Mas sempre se encontra uma aranha peluda em
cima da cama, ou se surpreende um escorpião atravessando por debaixo da mesa de
jantar, ou se depara com uma cobra, coleando no vão do corredor. Ao cair da
noite se fecham portas e janelas. Em turíbulos espalhados pela casa, se começa
a queimar uma mistura de bosta de vaca e óleo de anta, para repelir insetos,
cheiro que impregna e caracteriza o paço. Mesmo assim o prédio é assediado à
noite por nuvens de insetos voadores, que querem entrar, atraídos pelas luzes
[...][227]
No
processo de instalação de seu “império”, Pierre Bataillon se depara com dois
povos indígenas: os Caxinauás e os Numas. O contato dos exploradores com os índios
sempre foi apresentado como conflituoso na ficção da borracha e em O amante das amazonas não deixa de o ser, mas o romance acentua um
posicionamento duplo dos índios em relação ao invasor do espaço por eles
habitado. Logo que chega ao Igarapé do Inferno, Pierre encontra apenas os
Caxinauás e como estes não ostentam resistência a sua invasão, mostram-se
pacíficos, ele os domina com facilidade e implanta ali sua soberania. Impõe,
como homem branco civilizado, a paz e a ordem entre os Caxinauás, desconsiderando
que eles pudessem ter qualquer organização social. Em nome do progresso, Pierre
promove a castração da cultura Caxinauá. Tendo a identidade negada, os
Caxinauás se submetem “quase alegres”, ironiza o narrador, e são transformados
em objetos do seringal Manixi, reduzindo-se, após enfrentarem doenças como
tifo, malária, sarampo, sífilis e uma epidemia de gripe, “[...] a 84 viventes
agricultores, servos da gleba do Coronel.”[228]
Enquanto
os Caxinauás se submetem à dominação, os Numas demonstram comportamento oposto.
Nômades, arredios, impõem-se como resistência, insistem em ser, em não se
negar. Diferentemente do que ocorrera com os Caxinauás, que tiveram seu espaço
restringido, os Numas, seres que se deslocam na rapidez de um sopro, que se
movimentam com facilidade na noite, que quase não são vistos, cercam o seringal
e impedem sua expansão. Usando de estratégias para conquistá-los, Pierre deixa,
nos limites do seringal, presentes nos quais eles não tocam, impossibilitando
um canal de comunicação. Diante do comportamento dos Numas, a voz parodística
do narrador interroga, instalando uma problemática: “Onde há resistência, há
poder?”[229]
As
obras do ciclo, em geral, apresentam o índio como elemento hostil e cruel.
Poucas vezes, é acentuado que o seu comportamento violento resulta de uma
reação a uma violência, a invasão. Divergindo do tratamento omisso ou pelo
menos parcial, haja vista que em algumas obras destaca-se a figura sanguinária
do indígena e de vítima do invasor, no romance O amante das amazonas há uma declaração enfática sobre o extermínio
indígena. Essa declaração, posta através de uma imagem alegórica, permite
ouvir, por intermédio do narrador, a voz sufocada de Maria Caxinauá, que é
também uma voz coletiva:
OS ásperos,
compridos cabelos ensombravam a face com a figura da morte. As pupilas eram
dadas por incompreensível aura branca, um espantoso horror. Nariz aquilino,
cigano. Pele bronze escuro queimado e fosco, amassado como papel. Sujo, longo
vestido azul, rasgado num flanco, sem cintura, arrastando-se no chão como uma
louca num hospício. Observada à distância, era a concentração do Ódio. De
perto, era o Medo, o incontrolável Pavor, olhos bem abertos. As faces murchas
indicavam que perdera todos os dentes, as sobrancelhas eram ralas. Mas aquela mulher
não era uma velha! Subitamente se deixava ver! A face tem arrogância, desprezo,
desafio, o olhar perigo, o veneno, pensou Ferreira, apertando o laço da
gravata. Hostil, aquela existência silenciosa e animal concentrava-se em si
mesma, refluía em si, como serpente. Desde aquela noite Ferreira a teme. Vê a
inimiga. Pois a Caxinauá é vingança acumulada, petrificada. Toda a multidão
inumerável de índios massacrados reterritorializava-se naquele corpo. Todos os
torturados, os banidos, os exterminados pela humanidade européia, os saqueados,
desculturados, reduzidos a ruínas se cartografam ali, na pessoa física e
individual de Maria Caxinauá. São raças inteiras espoliadas, traumatizadas,
despossuídas de seus deuses e de suas riquezas construídas durante séculos,
sangradas em hecatombes, liquidadas para sempre. Contaminadas de doenças,
escravizadas e corrompidas, submetidas ao trabalho escravo que consumiu o
sangue de milhões de pessoas desprovidas de suas economias de subsistência,
tragicamente transformadas em exércitos de massas proletárias – vinte milhões
de índios massacrados no Brasil se corporificavam ali, no gesto cego de Maria
Caxinauá.[230]
Nesta
passagem, está implícita a paródia ao conto “A decana dos Muras”, de Alberto
Rangel. O tom inicial da descrição de Maria Caxinauá segue paralelo à
caracterização assombrosa e torpe da decana para apresentar ao leitor o texto
parodiado, mas, num segundo momento, surge o distanciamento ou a oposição
parodística a partir da negação de senilidade à índia Caxinauá – aquela mulher
não era uma velha! – e ao invés de impor comiseração pelo estado de
rebotalhamento da índia, alça-a à condição de um ser terrível, forte e
ameaçador. Em “A decana dos Muras”, ao contrário, o narrador, após apresentar o
aspecto assombroso da velha índia, tenta suavizar-lhe o aspecto, atribuindo-lhe
uma docilidade na juventude perdida. O texto parodístico traz, por fim, a
denúncia do massacre da cultura indígena que o texto parodiado não acentua.
Destacamos que o texto parodístico atinge um nível profundo em relação ao texto
parodiado. A determinação ideológica que preside o discurso do autor Alberto
Rangel, assentada na visão ambivalente sobre o extermínio autóctone, à medida
em que comunga do coro depreciativo do colonizador, não podendo ocultar sua
repugnância e rejeição pelo ser que representa o outro, é desocultada.
O
império do látex, emblemado em Pierre Bataillon e seu palácio excêntrico e
anacrônico no meio da selva, ressurge no final do romance numa alegoria
fantasmagórica. Nas ruínas do palácio saqueado, resta apenas o piano de cauda
Pleyel, objeto sufocado em seu aspecto nobre e fáustico como se silenciado após
o encerramento de um concerto. O palácio, congelado no tempo, é povoado por
fantasmas da História, abriga os espectros da ostentação que passam “[...]
arrastando longos e pesados vestidos de veludo verde, envergando reluzentes
casacas [...]”,[231]
esquálidos, saídos do “sepulcro do luxo” para expiar suas “culpas mortas”.
Pierre também ali se encontra transformado numa negação do que fora outrora:
E à noite a
figura do antigo e descarnado dono poderia ser vista, através das janelas, como
se o iluminasse uma catedral, mostrando-lhe a face horrível e desesperada, os
olhos mergulhados no escuro, à procura de algo, à procura do tempo, à procura
de si – e passando sem que ninguém o visse na sua infinita miséria. E todo o
esplendor daquele luxo antigo era uma torturação sinistramente mergulhada na
destruição de um império ali por fim silenciado.[232]
A
narrativa de O amante das amazonas
focaliza, além da personagem Pierre Bataillon, evocadora de um passado que o
narrador insere fragmentariamente na história, as personagens Juca das Neves e
Ribamar de Souza que se ligam às fases de decadência e de mudança de
perspectiva econômica. A fase de decadência, em que muitos aviadores se
arruinaram, concentra-se em Juca das Neves, dono do falido “Armazém das
Novidades”, ainda mantido aberto quando a abastança já não mais existe e Manaus
é uma “cidade-fantasma”. A indicação de que o “ciclo da borracha” está
encerrado e de que as estruturas social e econômica apresentam ares de mudança,
estampa-se no mobiliário discreto, na decoração que já evoca o modern style descritos na casa do
comendador Gabriel Gonçalves da Cunha, personagem histórica recriada na ficção.
Ribamar de Souza transforma-se no herdeiro do falido império do látex, compra o
armazém de Juca das Neves e o moderniza, tornando-se um novo-rico: “Ribamar,
com auxílio de Juca das Neves, modernizou o Armazém das Novidades, passando a representar vários produtos
norte-americanos, como as máquinas de costura Singer – de enorme popularidade.
Ribamar expandiu os negócios e começou a ameaçar o império comercial da
poderosa família Gonçalves da Cunha [...]”.[233]
O amante das amazonas promove um olhar
abrangente e profundo sobre o ciclo econômico da borracha que se seria no texto
como um todo e também condensa-se em trechos do romance. A capacidade de
condensação, segundo Perrone-Moisés,[234]
é um dos valores apontados pelos escritores-críticos no texto moderno, na medida
em que permite “dizer muito em poucas palavras”. A autora destaca que a
condensação, mais do que uma síntese, importa numa saturação de sentidos. Um
trecho de O amante das amazonas realiza uma condensação que
retoma toda a História do ciclo, englobando o processo que deslanchou a alta
cotação da borracha no mercado internacional e os efeitos locais desse
processo, estampados na circulação de riqueza na capital amazonense e na adoção
de todo um modus vivendi à reboque da
cultura européia. O narrador acrescenta aos fatos e aspectos históricos,
enumerados em frases curtas, comentários irônicos e críticos, caracterizando o
tratamento parodístico:
[...] A
cotação da borracha amazonense sobe na Bolsa de Londres. Aumenta a produção dos
pneumáticos. O Amazonas, único produtor de látex do mundo. Manaus rica, copia
Paris. Comerciantes enriquecem. Ostenta o Teatro Amazonas os seus espelhos de
cristal. Os milionários jogam cartas com anelados dedos pesados de diamantes,
arriscando fortunas no Hotel Cassina, no Alcazar, no Éden, no Cassino Julieta.
Telhas de Marselha ao luar na Rua dos Remédios, na Rua da Glória. Arquitetura art-nouveau do palácio de Ernest Scholtz
– depois Palácio Rio Negro, sede do governo. Arandelas, bandeiras, implúvio.
Intercolúnio. O cunhal, o lambrequim, a voluta, o capitel, a cornija.
Arquitrave. Barrete de clérigo, adufa, muxarabi, água-furtada, muiraquitã,
envasadura, aleta, estípite. O enxalso, o frontão de cartela. Galilé. Pequena
Manaus, grande Paris!.[...] Um prédio importado, peça por peça, da Inglaterra:
a Alfândega, montada aqui. Outro, projeto do próprio Gustavo Eiffel, de ferro:
o Mercado Municipal. Um Serviço Telefônico serve a cidade. A eletricidade
ilumina as ruas de Manaus no início do Século, talvez das primeiras cidades brasileiras
a ter este serviço [...] Óperas, óperas, óperas. Diariamente. Prostitutas
importadas. A Cervejaria Miranda Correia. A Praça da Saudade. O Roadway, o
Trapiche. Sífilis. Malária [...] 126 navios trafegam no interior do Amazonas.
Vaticanos, gaiolas e chatas. Inaugura-se, às custas de 3,3 milhões de dólares,
o Teatro Amazonas, em 1896 – a mais cara e inútil obra faraônica da História do
Brasil, milionária e importada, com painéis, centenas de lustres de cristal
venezianos, colunas de mármore de várias cores, estátuas de bronze assinadas
por grandes mestres, espelhos de cristal visotados, jarrões de porcelana da
altura de um homem, tapetes persas – tudo o que, aliás, em 1912 desapareceu,
esvaziando-se o Teatro para transformá-lo num depósito de borracha de uma firma
americana. Ali o erário público foi enterrado em 10 mil contos de réis: o
Teatro Amazonas custou o preço de 5 mil casas luxuosas. O dólar a 3 mil réis.
Por 900 contos de réis se constrói o Palácio da Justiça. E por 1 mil e
seiscentos contos de réis se constrói o Palácio do Governo; nunca concluído. O
Teatro custou 10 mil vidas. Sim: Em 1919 no Amazonas já tinham chegado 150 mil
emigrantes. A borracha naqueles anos foi tão importante quanto o café. O
Amazonas exportou 200 mil contos de réis em borracha, contra 300 mil contos do
café paulista na mesma época. Em 1908 é fundada a mais antiga universidade do
Brasil, em Manaus, com cursos de Direito (o único que sobreviveu), Engenharia,
Obstetrícia, Odontologia, Farmácia. Agronomia, Ciências e Letras. Nessa época
12 milhões de francos franceses sumiram, roubados no Governo de Constantino
Nery. Encampa-se, fraudulenta e inutilmente, a Manaos Improvements, por 10.500 contos de réis – o preço do Teatro
Amazonas. A história do Amazonas é um acúmulo de loucuras corruptas.[235]
A
diversificação apresentada no romance O
amante das amazonas em relação às demais obras ficcionais do “ciclo da
borracha” refere-se tanto a um tratamento mais aprofundado e crítico sobre o
tema quanto a uma renovação do código lingüístico-literário. Através do
procedimento parodístico, aspectos muitas vezes tratados superficialmente
ganham uma nova interpretação como já demonstramos no que diz respeito à versão
do relacionamento do autóctone com o explorador e à colocação do seringalista em
um contexto mais amplo do ciclo.
Ao
mesmo tempo, imagens desgastadas são acrescidas de novos conteúdos como, por
exemplo, a do estado de solidão dos seringueiros, isolados na selva. Geralmente
postos em um nível animal, que também o romance destaca (“tinham virados
bichos”), recebem, por outro lado, o perfil de seres mecânicos, “[...] movidos
por um interno aparelho de corda [...][236],
que significa pôr em evidência a negação de sua existência como seres vivos e
demonstrar a condição de objetos em foram tomados.
A
espoliação dos seringueiros é destacada, mesmo sem a enumeração das atividades
diárias do seringal. A discussão sobre o sistema de exploração seria-se em
frases curtas que podem ser tomadas como fragmentos de discursos que põem em
antagonismo duas visões de mundo: a do explorador, calcada no lucro, e a do
nativo, baseada na subsistência. Assim também se acentua a paródia que toma o
discurso do outro sob forma de pergunta para problematizá-lo: “[...] O leite se
tornava negro, ao meu contato. A agricultura não casa com a seringa? Produz o
que consome? [...]”.[237]
Em
categorias da narrativa, como o foco
narrativo, o tempo, o enredo e as personagens, está concentrada a renovação do plano de expressão de O amante das amazonas. Sobre o foco narrativo (narrador) já fizemos
considerações. O tempo e o enredo, por sua vez, são categorias
interdependentes, a mudança numa, acarreta conseqüentemente mudança na outra.
Comprovando uma orientação que norteia todo o romance, a auto-explicação, o
enredo pode ser melhor entendido se tomarmos um trecho em que a personagem Frei
Lothar rememora os saraus promovidos por Pierre Bataillon, nos quais o Frei
tocava violino, atrasando o movimento, e Pierre, piano: “[...] Aquela sonata
tem um módulo que se repete, e sobre esse par de notas Beethoven vai
construindo a intriga, uma trama de perguntas e respostas, indagações, uma
seriação de questões amorosas, apaixonadamente transcendentes que o violino
pega e alonga, desenvolvendo, em diálogo com o piano, em rápidas e fortes frases...
O segundo movimento conta uma história curta e simples, conseqüência da
anterior, que o violino repete, reconta, reforça, concorda, apoia e retoma. O
violino entra com alma...”[238]
Esse trecho detalha a construção do enredo do romance. O primeiro movimento da
sonata refere-se à primeira parte da história em que o narrador evoca o
fastigioso império de Pierre Bataillon e as personagens que estão a sua volta;
o segundo movimento, conseqüentemente, refere-se à segunda parte da história em
que ruído o império do látex, a narrativa passa a enfocar Manaus em seu estado
de decadência física e humana. São sintomas dessa decadência o arruinado
aviador Juca das Neves e sua mulher, D. Constança. Como o andamento do piano de
Pierre e do violino de Frei Lothar que não se desenvolvem no mesmo compasso,
essas duas partes da história, apesar de interligadas pelos aspectos apogeu e decadência do ciclo, seguem uma estruturação diferente. O universo
mítico evocado em capítulos como “Numas” e “Ratos”, na primeira parte da história,
não encontra lugar na cidade, o espaço da vida pretendida racional. É de se
notar que na segunda parte os acontecimentos da narrativa se apresentam de
forma menos desordenada e fragmentária do que na primeira parte, marcada não
somente pela quebra da relação causal entre os capítulos como também pela
descontinuidade das ações das personagens ou da seqüência de acontecimentos. Em
relação ao enredo, portanto, o romance não tece seqüencialmente as ações como
ocorre no romance tradicional. A atração que esse enredo exerce não é, por
conseguinte, pelos encadeamentos de episódios que caminham para a solução de um
ou mais conflitos, mas justamente pelo estranhamento da disposição estrutural da narrativa.[239]
A
categoria tempo implicada na
disposição do enredo é igualmente tratada sob uma perspectiva inusitada no
romance. Primeiramente, devemos ressaltar que o tempo do romance tem um caráter
psicológico porque é tempo da memória, da lembrança, e daí a fragmentação do
enredo em virtude do que o narrador pode e quer lembrar. Quando o narrador
enuncia, na abertura do primeiro capítulo: “Nós nos despedimos na Cancela sob a
primeira luz da madrugada do Natal de 1897 – eu e minha mãe, nunca mais a vi -
na presença de todos que ali estavam e de quem me não quero lembrar no povoado
de Patos em Pernambuco, de onde parti com duas mudas de roupa na mala [...]”[240],
temos preliminarmente a noção de que os fatos a serem narrados pertencem ao
passado pela indicação dos verbos no tempo pretérito e pela referência à
condição de lembrança.
O tempo
pretérito, contudo, como indicador de uma ação decorrida, deve ser tomado com
cautela no plano ficcional. Nunes alerta, baseado em argumentos de Kate
Hamburger e Harald Weinrich, que “[...] na ficção criamos personagens, Eus
fictícios originais, que se movem num plano de existência estética,
relativamente ao qual as enunciações perdem o alcance factual de registros da
experiência [...].[241]
Desse modo, a ficção não se guia pela mesma lógica da gramática, que é a lógica
do mundo real. O uso do tempo pretérito não indicaria uma ação passada, mas uma
ação contada: “[...] O pretérito assinala que há narrativa e não o fato de que esta se realiza para trás no tempo
que passou.”[242] Como
exemplo de que não se narra necessariamente aquilo que já ocorreu estão as
obras de ficção científica que também empregam o tempo pretérito e, por outro
lado, situações ficcionais em que, mesmo utilizando o pretérito, indica-se que
uma ação está se processando.
O narrador
narra um tempo passado, atualizando-o no ato da enunciação. Não fala de um
passado de forma distanciada, mas se põe em seu momento mesmo. A segunda pessoa
do plural inclui narrador e leitor: “[...] Nós retornávamos à elaboração do
nosso faustoso passado, nós chegávamos naquela brusca tarde de ouro sem sentido
e sem valor em que o Palácio ocupava na sua singularidade todos os detalhes de
um aspecto de deslumbrante luz [...].”[243]
Trata-se de uma situação mais complexa do que o recurso da retrospecção por
meio da analepse em que o recuo narrativo “[...] é feito numa exposição separada, interrompendo a ação principal, que volta ao seu curso
quando aquela termina [...]”.[244]
O narrador aproveita-se do tempo lingüístico em que dialoga com o leitor a
partir de um agora para dar ao
passado um caráter de ubiqüidade; fazê-lo acontecer como presente ficcional.
A personagem é uma categoria narrativa que
tem particular importância em O amante
das amazonas e por isso não podemos deixar de considerar a concepção que
Rogel Samuel expressa sobre ela em seu texto teórico Crítica da escrita: “[...] o próprio da natureza narrativa não é a
ação (há romances sem ‘ação’, ou de ação reduzida [...] o próprio da natureza
narrativa não é a ação, mas o personagem
como nome (o ‘pai’, a ‘Capitu’, o ‘Peri’, a ‘Ceci’) como material sêmico
desta moldura catalogável de rótulos, deste fichário do dito sobre o
personagem”.[245] Na
própria seleção dos capítulos do romance, estampa-se a proeminência que têm as
personagens, uma vez que dos 23 capítulos que compõem o romance, 6 levam como
título nomes de personagens (Paxiúba, Ferreira, Júlia, Frei Lothar, Ribamar,
Benito). Ademais, os capítulos “O leque” e “Rua das Flores” podem ser
considerados como enunciadores de personagens, pois detêm-se quase que
exclusivamente nelas e não numa ação.
A menção feita
por Samuel à personagem como material sêmico remete a terminologia proposta por
A. J. Greimas em seu livro Semantique
Structurale (1965),[246]
que está calcada na concepção
semiológica, significativa de um rompimento com a noção de personagem como
imitação do ser humano, concebendo-a como signo.[247]
Samuel destaca que o texto ficcional é constituído de logros e que o seu logro
fundamental é ocultar sua própria condição fictícia. Jogando com uma forma de
exposição da personagem oposta a dessa ocultação, o narrador de O amante das amazonas revela o seu
caráter ilusório: “Paxiúba na montaria, espetáculo bom de ver, veja-o que ele é
de papel, literário [...].”[248]
As
personagens, em O amante das amazonas,
são emblemáticas tanto em relação ao ciclo quanto ao processo de colonização da
Amazônia como um todo. O narrador anuncia essa condição através da personagem
Paxiúba, quando a refere como “[...] emblema da Amazônia amontoada e brutal,
sombria, desconhecida e nociva [...].[249]
Paxiúba carrega a marca de um ser híbrido, filho de um negro barbadiano e de
uma índia Caxinauá. Nele se personaliza um duplo: Com os seres que estão no seu
mesmo plano, libera taras sexuais: Zilda, mulher do seringueiro Laurie Costa é
estuprada e a investida se repete com Maria Caxinauá. Com Zequinha Bataillon,
seu senhor, transforma-se num animal domado, dormindo a seus pés:
[...] Paxiúba
era da confiança de Zequinha, dormia na sua cama, criado desde criança junto
dele, adorando-o, como um cão [...][250]
...............................................................................................................................
[...] ele era
personalidade do Palácio, chefe do aparelho policial do Seringal, guarda de
Zequinha Bataillon, diziam amigo que dormia com o menino, importância capital
de bicho. Sendo que Paxiúba armado assassino, com águia e serpente, eliminava
quem devia de ser, na sua função de coagir e de matar [...][251]
Pierre
Bataillon é outra personagem emblemática e indicial[252]
pela significação que acumula de uma cultura hegemônica, assim como também o é
Maria Caxinauá pelo que representa de oposição a essa cultura. Engloba a
submissão dos Caxinauás, mas também é uma imagem da reação.
Se
o romance apresenta a imponência em Pierre Bataillon, não deixa de vasculhar o
fundo de mediocridade e mesquinhez que a ostentação oculta através da
personalidade neurótica de D. Constança:
D. CONSTANÇA
tinha sido educada para ser uma boneca inútil. Exagerara e ficou louca [...] D.
Constança se abanava com o leque, como se a queimasse um fogo interior. E tinha
péssimo caráter, bastava a pessoa dar as costas para que ela começasse a
retaliação. Voz fina, língua viperina. Olhar de fuzilante ódio. Os seres das
classes inferiores eram ‘gentinha’, não existiam [...]
[...] Nunca
teve uma amiga. Começava a falar de todas logo que fechava a porta da rua.
Falava para Juca das Neves, falava muito rapidamente, a voz nervosa, fina,
angustiada. Passava horas e horas em fofocas, maledicências, escondendo-se
atrás de portas para ouvir, entreabrindo janelas para espiar. Vestia as pessoas
com tudo o que pensava a respeito, a todos nutrindo um ódio que a corrompia por
dentro [...]
[...] à medida
que foi envelhecendo foi ficando pior. Começou a falar e abanar-se sozinha,
sentada na cadeira de balanço onde se abanava e falava até tarde da noite. E
sozinha falando, falando, e abanando-se, abanando-se, os olhos se fixaram numa
característica sua, que era o “rabo do olho”, como ela dizia, já não olhando de
frente para ninguém, não encarando ninguém, o olhar fixo nos lados e cantos das
órbitas como se sempre procurasse ver e ouvir algo que se passava pelos lados e
atrás, um olhar congelado numa expressão de ódio, e até hoje me lembro dela
assim sentada, olhando para os lados e para trás, como cercada de inimigos,
abanando-se frenética e falando aflita, falando mal de seres imaginários, de
pessoas que já tinham morrido há muito e muito tempo, e sozinha, esquecida...[253]
Por
outro lado, o romance ilustra na personagem Benito Botelho o elemento que se
recusa a aderir à cultura da ostentação e, por isso, torna-se marginalizado. Na
contramão dos hábitos sofisticados, ele anda mal vestido, tem os dentes
estragados e esboça uma palidez doentia. A sua ironia “[...] contra os
poderosos e contra o tacanho e conservador meio em que vivia [...]”[254]
não lhe rendia mais do que o insignificante cargo de revisor do Jornal Amazonas
Comercial. No entanto, a sua cultura não era postiça, como poeta e poliglota
“[...] lia e falava francês, inglês, alemão e italiano, além de sólidos
conhecimentos de grego e de latim. Autodidata, construíra o seu saber: “[...]
Conhecedor dos dois mundos, seu domínio ia da Filosofia à literatura, da
História à Filologia [...]”.[255]
Apesar disso, e talvez por isso mesmo, todos o desprezavam. Contrastando com a
simplicidade e o verdadeiro interesse pelo conhecimento de Benito, que não se
importava nem com as condições precárias em que morava, com as águas da
enchente batendo à soleira da porta do tapiri chamado de casa, onde empilhava
livros, estavam os “[...] beletristas da Academia, os homens de letras,
juristas de óculos no nariz e paletó impecável, doutores, jurisconsultos,
magistrados, desembargadores [...].”[256]
A Benito, porém, como opositor nato a tudo o que significavam, era negado o
emprego na biblioteca municipal. O narrador destaca o isolamento de Benito na
razão direta de sua rebeldia:
[...] Ele era
a única voz de oposição naquela sociedade louvaminheira, laudatória, servil,
risonha e patriarcal [...] Ele era o inimigo da elite de quem Eudócia fora
aliada e escrava – ela, porém, grata à patroa, que considerava uma espécie de
benção, não compreendia o ódio do sobrinho, ódio de que, por isso, também era
vítima.[257]
Frei
Lothar que, a exemplo de Benito Botelho, dá nome ao capítulo, constitui
personagem que recebe especial atenção no romance. Como missionário, acumula um
diálogo com as demais obras do ciclo que quase unanimemente se voltam à
representação dessa personagem e está rigorosamente ligado ao processo de
colonização da Amazônia.
Essa
personagem se choca com o papel histórico que Arthur Cezar Ferreira REIS
atribui aos missionários na Amazônia:
Empresa de
titãs, a conquista espiritual da Amazônia empreendida pelos franciscanos de
Santo Antônio, Salezianos, beneditinos, padres do Espírito Santo, agostinianos,
dominicanos, padres servos de Maria, capuchinos, barnabitas, padres do
Preciosíssimo Sangue, está constituindo um capítulo dos mais memoráveis e
dignificadores da espécie humana na história da civilização contemporânea.[258]
A
disposição de um titã seria o aspecto mais improvável a se atribuir à
personagem Frei Lothar. No capítulo dedicado a ela, o primeiro destaque é a sua
triste figura. Sem denodo algum, o frei encontra-se vencido pelo cansaço de uma
tarefa inglória: “[...] Oh, meu Amazonas! Deus é grande mas a Floresta é maior,
e eu já não sou o mesmo.”[259]
A conquista espiritual que teria o Frei de empreender, por sua vez, acha-se
ameaçada pelo abalo das convicções religiosas e pela enumeração de fatos
contingenciais que perturbam a sua missão: “[...] O Frei perdera a fé, falava
grosso, cuspia no chão, andava armado, tinha mau humor e mau cheiro [...].”[260]
Frei
Lothar e Benito Botelho se aproximam enquanto seres inadaptados num espaço. Tal
como Benito, Frei Lothar é repudiado, execrado porque abomina a sociedade onde
vive, os seus modos requintados, mas sem autenticidade. É o oposto desse
requinte, tem maus modos, escarra no chão, fala palavrões e age com rebeldia,
odiando a classe dominante, a religião, a fé porque não as vê produzirem nada
verdadeiramente útil para a vida. Como religioso, o que viu toda a vida “[...]
não foi Deus: Foi a dor, a dor e a morte, a miséria e a desolação [...].”[261]
Frei Lothar só encontra prazer na música, como Benito só pode encontrá-lo nos
livros:
[...] Frei
Lothar se levantou com esforço, saiu dali e foi ao camarote de onde veio com o
violino. Sentou-se. Ia estudar até o sono chegar. Era a Segunda Partitura de
Bach, que sabia de cor, mas nunca conseguia superar certas dificuldades. Tocava
sem a partitura. Estudava sem a partitura, no escuro, dentro do vento veloz.
Sozinho. Sem partitura e sem luz, sem ninguém. Oh! No Amazonas era assim. O
Amazonas não tinha partitura, não tinha luz, nem ninguém. O Amazonas era uma
imensa planície de miséria [...][262]
Frei
Lothar e Benito são duas personagens que remetem à degradação. Não em virtude
da derrocada econômica do ciclo, mas por uma inadequação a um modo de vida
baseado num simulacro: um desenvolvimento econômico ilusório, um projeto
fictício de civilização.
O
relevo que têm as personagens em O amante
das amazonas aparece destacado no final do romance, que ao invés de remeter
para um desfecho do enredo, faz um encadeamento de personagens no tom dos
antigos narradores:
[...] não se
esqueça dessa história tão bonita do amante das amazonas. A Amazônia é um certo
lugar fantástico que também está no fim, mas quando sonhar sonhe com o Igarapé
do Inferno se indo por dentro daquele pântano, passando pelo Palácio Manixi de
grande memória, com o jovem Zequinha Bataillon. Lembre-se de Maria Caxinauá, do
bugre Paxiúba, de Benito Botelho, de Pierre Bataillon ao piano e de sua
Ifigênica Vellarde. Não se esqueça de Antônio Ferreira, da maacu Ivete, da
Conchita Del Carmen, de Juca das Neves e D. Constança, sua mulher, e do
Comendador Gabriel Gonçalves da Cunha. Mas de Frei Lothar e de Ribamar de
Souza, que assim se vai nesse vosso Narrador que desaparece, neste ponto.[263]
O
comentário do historiador Arthur Cezar Ferreira Reis sobre a conquista
espiritual da Amazônia apresenta-se menos contundente para entendermos a
participação do missionário na Amazônia do que o ser de papel que é Frei
Lothar. Vemos que a missão de Frei Lothar não depende apenas de um arrojado
pioneirismo, ele luta com os empecilhos naturais, a lama, o calor, os mosquitos
e com a própria inviabilidade de justificação da conquista porque não crê nela.
Por intermédio do discurso ficcional, portanto, promove-se uma percepção mais
autêntica do real, para a qual chama atenção Samuel, baseado na tese de
Jean-Paul Sartre em A imaginação: “A
literatura fala do mundo, através de uma imagem que é outro mundo. Só
aprendemos o real se sairmos do real, pela imaginação [...]”[264]
Por outro lado, a visão do historiador Arthur Cezar Ferreira Reis é
ideologicamente convincente, transmite um discurso oficializado pelos
conquistadores na Amazônia, que a literatura tem a capacidade de desmontar.
Samuel
explicita que sair do real pela imaginação não significa se pôr além do real
dado no mundo, ao destacar que o discurso não se separa do mundo, “[...] o
discurso só pode falar de uma única coisa: Do mundo [...].”[265]
A
postulação que Samuel apresenta em Crítica
da escrita é coerentemente realizada em O
amante das amazonas à medida que se verifica a apresentação do discurso
literário como arte imaginativa, revelada, metalingüisticamente, através do
narrador que se anuncia como fingido; do caráter irreal (ficcional) das
personagens apresentado no próprio texto e do nível simbólico do texto que
apresenta relações solicitadoras da busca do sentido do que não está
explicitamente dito. Por esses caminhos o romance atinge um nível de
criticidade na abordagem do evento histórico do “ciclo da borracha”.
C O N C L U S Ã O
Alejo
Carpentier argumenta que quando não há experimentação, diversificação, uma
novelística não evolui.[266]
Essa constatação pode ser tomada como válida para o conjunto de obras
ficcionais sobre o ciclo econômico da borracha no Amazonas. Durante um século,
a maioria das obras apresentou pouca inovação. Entretanto, mesmo sob uma
constância de abordagem, algumas obras realizaram um grau de diversificação,
seja pelo teor de aprofundamento que conseguiram desenvolver em relação às
demais, seja pela quebra de estereótipos sempre retomados, seja por uma
renovação profunda no tratamento conteúdístico do tema e no tratamento
estético.
Com
base nessa diversificação, propusemo-nos a estudar três obras que reúnem
características afins: A selva, de
Ferreira de Castro, Beiradão, de
Álvaro Maia, e O amante das amazonas, de Rogel Samuel. A
primeira dessas características é o contato e a experiência do escritor no
mundo do seringal, que tomamos não como negação de trabalho inventivo do
escritor, mas como possibilidade de verificação das determinações dessa
condição de experiência em cada obra.
Procedendo a
divisão de três fases em que foram produzidas as obras mencionadas, obtivemos
um indicador que permitiu a dedução de que as obras do ciclo apresentam uma
característica temporal, ligando-se a manifestações estéticas de sua época.
Ainda assim, à exceção da terceira fase, ocorreu um contínuo de abordagem: o
enfoque maniqueísta, o que evidencia que as obras, mesmo distanciando-se no
tempo, mantiveram uma aproximação. Consideramos, portanto, que o tempo influiu
menos do que a repetição dos estereótipos para a não diversificação das obras.
Não é o tempo em que são publicadas
as obras um critério de fundamental importância para a diversificação temática
e estética. A obra de Ferreira de Castro, enquanto representante da primeira
fase, por se situar num determinado período de publicação, extrapola o critério
temporal e as limitações dessa fase por apresentar um conjunto documental bem
constituído. O tempo também não significa que uma obra publicada praticamente
no século XXI torne-se moderna em relação ao tema que aborda ou demonstre um
trabalho de re-elaboração da expressão narrativa. Esclarecendo essa observação,
está o romance Látex, de Marco
Adolfs, (2000) que, apesar de não se
centralizar nos estereótipos comuns a outras obras, não realiza uma criação
ficcional contundente.
A primeira
característica – a experiência - a partir da qual selecionamos as três obras
tem um fator decisivo para suas criações. Ferreira de Castro produziu A selva, compelido pela emergência de
registrar a sua experiência no mundo do seringal. Essa experiência difícil e
inusitada para o escritor em sua adolescência só se amenizou como um fantasma
de sua lembrança quando pôde extravasá-la sob a forma de criação ficcional, mas
o autor destacou, em prefácio ao romance, que a vivência no seringal, motivadora
da obra, não significou reprodução de sua vida particular.
Álvaro Maia
foi igualmente impulsionado pela experiência de vida que compreende o
nascimento e a vivência durante a infância no seringal na criação de Beiradão. Os dados de sua vida e da
representação ficcional de sua obra estão tão próximos que se pode
seqüênciá-los. A saga de Fábio, personagem central de Beiradaão, é a mesma do pai de Álvaro Maia, com suas
características peculiares como o rompimento do sacerdócio, a vinda para o
Amazonas banido pela seca, o casamento com a filha de um seringalista também
oriunda de educação religiosa. O filho desse casal vem a ser a representação do
próprio autor. Pode-se dizer que o autor inseriu na obra os seus dados
familiares, dando-lhes nomes fictícios. Além da experiência do mundo do
seringal, Álvaro Maia introduziu na ficção a sua experiência na política.
Essas, portanto, são as bases em que se assentam a criação ficcional de Álvaro
Maia.
Rogel Samuel
teve também a experiência como ponto de partida para a sua criação. Não se
verifica, nesse caso, uma experiência direta, mas o legado da memória familiar,
do avô, rico comerciante da borracha; do pai, Albert Samuel, que reuniu relatos
do ciclo econômico em Jaguareté, o
guerreiro, e do tio, M. Samuel, proprietário do barco Adamastor, referido na
ficção e reproduzido através de foto na capa e contracapa do romance, num
acréscimo fotográfico que compõe uma ambientação extra-textual para o romance.
O trabalho de invenção a partir da memória é destacado no comentário de
apresentação do romance, cerceando a análise apenas biográfica da obra: os
dados ficcionais que coincidem com os dados biográficos são, ainda, “mera coincidência”.
Na realidade,
as três obras estão significativamente ligadas à memória como ponto de partida
da criação ficcional. A memória do escritor, como ser real, sempre se imprime
nas obras, o que varia é sua menor ou maior intensidade. Agregando essa memória
à invenção ficcional, consciente ou inconscientemente, os escritores deixam em
suas obras fragmentos do que é infinitamente intenso.[267]
É preciso
ressaltar que um fator distintivo na obra de Ferreira de Castro é a proximidade
da experiência no seringal ao trabalho de criação da obra. O autor viveu no
seringal Paraíso de 1912 a 1913 e escreveu A
selva em 1929, dezesseis anos depois, portanto, de sua estada no seringal.
Como ele próprio informa, as sensações que lhe imprimiram essa experiência
estavam vívidas em sua lembrança e os momentos de dificuldades que passou em
Portugal, antes de escrever a obra, tornaram-na mais presente:
Foi esse
momento tão extraordinariamente grave para meu espírito, que desde então não
corre uma única semana sem eu sonhar que regresso à selva, como, após a evasão
frustrada, se volta, de cabeça baixa e braços caídos, a um presídio. E quando o
terrível pesadelo me faz acordar, cheio de aflição, tenho de acender a luz e de
olhar o quarto até me convencer de que sonho apenas [...][268]
O
seringal, para Álvaro Maia, está marcado pela experiência de seus pais e essa
talvez seja a principal causa de reproduzir os dados biográficos deles em Beiradão. Maia deixa o seringal ainda
jovem para fazer os estudos em Manaus e depois no Rio de Janeiro e, quando
retorna, praticamente já ingressa na carreira política que o manterá afastado
do seringal, enquanto ambiente. Essa situação justifica o enredo de Beiradão se construir quase todo em
torno de Fábio, representação ficcional do pai do autor, e só focalizar no fim
do romance o filho da personagem Fábio, que corresponde ficcionalmente a Álvaro
Maia. Entretanto, não se deve perder de vista que as concepções da personagem
Fábio estão imbuídas da visão política de Álvaro Maia. Outro fato a ser
considerado é que embora Álvaro Maia não
tenha permanecido a maior parte da vida no ambiente do seringal, uma vez que os
cargos políticos exigiam sua presença na cidade, o tema do seringal é constante
em tudo o que escreveu. Por outro lado, sua proposta de alternativa econômica
ao extrativismo da borracha e a construção ficcional da mudança do perfil do seringalista
têm menos apoio na vivência do seringal do que na plataforma política
estado-novista.
Os três
autores escreveram após o declínio do ciclo, mas tanto Ferreira de Castro
quanto Álvaro Maia têm próxima a significação do processo econômico. Maia escreveu
Beiradão em 1958, quando a Campanha
da borracha promoveu um fugaz interesse pela extração do produto.
O contexto
histórico de cada autor deu o matiz de suas obras. Com Ferreira de Castro, esse
contexto histórico-literário é o Neo-realimo português e a defesa dos
postulados de justiça social claramente declarados pelo engajamento dos
neo-realistas. O desfecho da obra aponta
para esse desejo de justiça , de eliminação da opressão. Entretanto, os ideais
socialistas subjacentes na obra de Ferreira de Castro apresentam uma
contradição na sua visão sobre o meio amazônico, acentuada no determinismo com
que avalia as injustiças sociais deflagradas no mundo do seringal, em que tanto
o explorador quanto o explorado acham-se condicionados pelos implacáveis ditames
do meio amazônico , que os animaliza e justifica todas as perversões do ciclo
econômico.
O perfil
alternativo do seringalista descrito na personagem Fábio, em Beiradão, tem origem no posicionamento
político de Álvaro Maia e, ao mesmo tempo, é um a discussão presente na época
de publicação de seu romance, uma vez que nessa época setores da sociedade
amazonense faziam uma reavaliação do ciclo econômico da borracha , apontando as
suas falhas e aventando uma possibilidade de soerguimento da economia local.
Destacamos que Álvaro Maia adere em sua obra à percepção de setores
conservadores da historiografia amazonense, endossando posições ideológicas
como a do historiador Arthur Cezar Ferreira Reis que vê o processo de
desbravamento da região amazônica e a espoliação promovida pela estrutura
econômica do ciclo como naturais ou como conseqüência do barbarismo do meio
ambiente.
A opção por
contar um tempo da memória é condizente com a época em que Rogel Samuel
escreve seu romance. Em 1992, o “ciclo da borracha” faz parte de uma memória em ruína. No romance, a voz
do narrador destaca essa condição da memória perdida: “[...]a minha descrição
corresponde ao que era o Palácio há muitos anos na minha mocidade e na proliferação da minha memória perdida, ah,
sim, porque estou velho mas não estou louco, e as ruínas no meio da floresta lá
estão como cultura e substância ainda
para confirmar a existência e elaboração[...]”[269]
O amante das amazonas rompe com o
determinismo enfocado pela estética naturalista , verificado em A selva e Beiradão, desvelando as reais condições sobre as quais se assenta o
processo de exploração econômica da borracha: a emergência do capital
internacional de conquistar novos mercados para torná-los subsidiários dos
grandes mercados, que é a verdadeira determinante das relações econômicas do
ciclo. A obra de Rogel Samuel acumula toda uma herança de percepções e
interpretações ficcionais sobre o ciclo e por isso se confronta com as obras de
Ferreira de Castro e Álvaro Maia.
Em termos de
conteúdo e de estruturação, os romances A
selva, Beiradão e O amante
das amazonas representam uma diversificação gradual do tema do ciclo na
ficção amazonense. A selva atinge
essa diversificação por se constituir numa narrativa bem realizada sobre o
processo econômico, reunindo e organizando os seus principais fatores. E, até o
ponto em que não incorre na contradição aqui apontada, evidencia a dialética
desse processo.
Beiradão, discutindo o papel do
seringalista, faz um corte na caracterização maniqueísta que se tornou habitual
nas obras que o antecederam e que ainda é acentuada em algumas obras
posteriores. O romance não contribui criticamente para o entendimento profundo
do ciclo econômico em virtude de promover uma diversificação que está
subordinada a um posicionamento político do autor e não a uma proposta de
reavaliação do discurso literário em torno do ciclo. Conquanto não realize
plenamente essa reavaliação, contribui com alguma matéria nova em torno do tema
através do acréscimo de sub-temas da vida interiorana amazonense.
Ainda que as
três obras se encontrem distanciadas no universo de produção ficcional do
ciclo, há um diálogo entre os autores. Esse diálogo tem uma certa pessoalidade
entre Ferreira de Castro e Álvaro Maia, que se comunicam para uma troca de
amabilidades.
Álvaro Maia
faz referência ao romance de Ferreira de Castro em seu livro de narrativas, Gente dos seringais, enviando-lhe um
exemplar. Ferreira de Castro lhe responde com uma carta escrita em Lisboa,
datada de 20 de dezembro de 1956, agradecendo a referência a sua obra e a sua
pessoa e também fazendo elogios ao livro de Álvaro Maia, considerando-o como de
grande beleza formal e, principalmente, evocador do mundo do seringal, que
Ferreira de Castro consegue reviver através da obra.[270]
Rogel Samuel,
por sua vez, empreende um diálogo ficcional com Álvaro Maia, pois representa o
autor na personagem Abraão Gadelha, de O
amante das amazonas, fazendo uma
avaliação crítica e irônica das relações políticas amazonenses. O diálogo que
empreende é, por isso, de caráter parodístico.
Através desse
estudo, procedemos a uma comparação orientada não apenas para a busca de
semelhanças entre as obras. Consideramos, com Flávio Kothe, que o estudo
comparativo carrega identidades e diferenciações:
A comparação é
uma busca de igualdades, para acabar num encontro de desigualdades, de
não-igualdades. Como busca de igualdades, enquanto identidades abstratas, ele
precisa superar-se para chegar a
semelhanças e diferenças concretas. Ela parte de uma abstração : de que se pode
aproximar o semelhante e o que se distancia
por suas diferenças, ou que até
se repele por suas semelhanças. Por outro lado, ela é propiciada por aspectos
idênticos, que tendem a acabar se revelando como diferenças e até
diferenciações intencionais. [271]
Rogel Samuel
chama a atenção de que a abrangência de sentidos promove o enriquecimento do
texto ficcional: “O valor do texto está em que não se lhe pode dar um sentido
pleno, conclusivo, mas sim deixar falar diversas vozes numa pluralidade de
discursos”[272] A obra
O amante das amazonas solicita um
estudo vertical pela gama de sentidos que agrega (filosófico, psicanalítico,
lingüístico e histórico). Esse estudo deverá pôr em evidência correlações que
as demais obras deixam de proceder e possibilitar além de um entendimento
profundo do ciclo econômico da borracha uma melhor compreensão também do
processo de colonização da Amazônia. Este estudo, porém, não se comporta nos
limites deste trabalho. Poderá ser realizado por intermédio de uma análise
exclusiva da obra.
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[1]
Leandro Tocantins é enfático sobre a criação do estado do Acre e sua relação
com o ciclo da borracha: “[...] Acre e borracha confundem-se no mesmo processo
histórico. Sem borracha o Acre não seria brasileiro, a menos que surgisse outro
produto-rei capaz de emprestar à terra a mesma fascinação econômica [...]” (Formação histórica do Acre, v.1, p. 31).
[2] O tratado
de Petrópolis, de 1903, assinado pelo Brasil e a Bolívia, estabelecia o direito
brasileiro sobre os 190.000km2 que compreendiam o Estado do Acre e também
continha uma cláusula prevendo a construção da ferrovia Madeira-Mamoré. A
ferrovia seguiria às margens do rio Madeira e possibilitaria uma ligação com a
região onde foi fundada a povoação de Porto Velho, solucionando o problema de
transpor o trecho por via marítima, uma vez que uma seqüência de vinte
cachoeiras impossibilitava a navegabilidade desse trecho. Através da ferrovia,
a Bolívia pretendia atingir um trecho navegável, alcançando o Oceano Atlântico.
A construção da ferrovia seria um negócio rentável para o americano Percival
Farquhar que conseguiu do governo brasileiro a concessão da estrada por
sessenta anos e a autorização para explorar os seringais localizados próximos
ao eixo da ferrovia. (Cf. Violeta R. LOUREIRO, Estudos e problemas amazônicos, p. 33-4).
[3] A
ficção do ciclo das secas estabelece relações com a ficção do “ciclo da
borracha”. Num trecho do romance O quinze,
de Rachel de Queiroz, a personagem Chico Bento revela o anseio de uma vida
melhor que caracterizou a vinda de muitos nordestinos para a Amazônia: “A voz
lenta e cansada vibrava, erguia-se, parecia outra, abarcando projetos e
ambições. E a imaginação esperançosa aplanava as estradas difíceis, esquecia
saudades, fome e angústias, penetrava na sombra verde do Amazonas, vencia a
natureza bruta, dominava as feras e as visagens, fazia dele rico e vencedor”
(s.d., p. 30).
[4]
Samuel Benchimol informa que a Amazônia recebeu, no período de 1877 a 1920, 300.000
imigrantes nordestinos (Amazônia:
formação social e cultural, 1999, p. 136). Antônio Loureiro, entretanto,
observa que esse número poderá ser ultrapassado através de novos estudos
(Antônio J. S. LOUREIRO, Amazônia:
10.000 anos, p. 167).
[5]Arthur C.
F. REIS, O seringal e o seringueiro, p. 80.
[6] João B.
RODRIGUES, As heveas ou seringueiras:
informações, p. 7-8.
[7] Ibid.,
p. 7-8.
[8] CF.
Leandro TOCANTINS, Amazônia: natureza, homem e tempo, p. 98.
[9] Arthur
C. F. REIS, O seringal e o seringueiro, p. 104-5.
[10]
Sobre esse aspecto, Arthur Reis comenta: “[...] Todas as energias se deslocaram
das tarefas agropecuárias para a extração do látex das héveas, num regresso
vertiginoso à etapa por que se iniciara o processo econômico da região [...]”
(Ibid., p. 41). Samuel Benchimol ressalta que, em virtude da febre do
enriquecimento fácil, o ciclo da borracha não poderia promover estabilidade na
terra: “[...] Homens à procura de fortuna, não à procura de terra. Daí a
instabilidade, nervosismo, palpitação. É a borracha na sua função atrativa,
fazendo ‘foco de apelos’ ou antes, dando ‘apetite de seringa’, na gíria do imigrante [...] (Romanceiro da batalha da borracha, p.
38).
[11]
“As condições de acumulação e crescimento do capital na economia da borracha
não foram potencializadas de modo a permitir um avanço da divisão social e
técnica da produção. Esta, limitada pela concentração de interesses na
monoprodução e pelo sistema de aviamento,
apresentava-se num quadro insignificante e incapaz de transformar
qualitativamente o padrão econômico [...]” (Eloína M. dos SANTOS, A rebelião de 1924 em Manaus, p. 31)
[12] Antônio
J. S. LOUREIRO, Amazônia: 10.000
anos, p. 172-3.
[13]
Segundo Manoel J. de Miranda Neto, “[...] dá-se o aviamento quando ‘A’
(aviador) fornece a ‘B’ (aviado) certa quantidade de mercadorias (bens de
consumo e alguns instrumentos de trabalho) ficando ‘B’ de resgatar a dívida com
produtos agrícolas ou extrativos da próxima safra, em espécie; havendo saldo
credor, ‘B’ recebe dinheiro; se o saldo é devedor, ‘B’ fica debitado até a
safra seguinte. Mas ‘B’, uma vez aviado, pode tornar-se aviador de ‘C’, e assim
por diante; o único aviado que não pode ser aviador é o produtor, isto é, o
lavrador ou o extrator que trabalha na terra ou colhe os produtos da floresta e
que é obrigado a vendê-los a um só comprador (monopsônio).” (O dilema da Amazônia, p. 54).
[14] Samuel
BENCHIMOL, Amazônia: formação social
e cultural, p. 73-74.
[15] Leandro
TOCANTINS, Amazônia: natureza, homem
e tempo, p. 110.
[16] Arthur
C. F. REIS, O seringal e o seringueiro,
p. 174.
[17] Ibid., p.
224.
[18] Samuel BENCHIMOL,
Amazônia: formação social e cultural,
p. 142.
[19]
Enlaçados por um sistema em que se tornavam dependentes dos aviadores e esses,
por sua vez, dos importadores-exportadores, cabia aos seringalistas
relacionarem-se diretamente com o extrator do látex. Os seringalistas mantinham
o seringueiro sob sua rígida dependência. Para alcançar sua posição, este
precisaria passar por uma longa experiência nos seringais, em muitos casos
atravessando gradativamente as posições de seringueiro, mateiro, comboieiro,
pesador, classificador, capataz, auxiliar de escrita, gerente de balcão,
arrendatário de estradas e colocações.
[20] Samuel
BENCHIMOL, Romanceiro da batalha da
borracha, p. 97.
[21] Ibid., p. 97.
[22] Ibid., p. 98.
[23] Ibid., p. 99.
[24] Samuel
BENCHIMOL, p. 102.
[25] Ibid.,
p. 102.
[26] Ibid.,
p. 103-4
[27]
Antônio J. S. Loureiro registra que os primeiros imigrantes cearenses e
maranhenses chegaram ao baixo Purus e a Codajás na segunda metade do século
XIX. O município de Lábrea foi atingido em 1871 pelos imigrantes nordestinos,
seguido de Canutama em 1874, Boca do Acre e Antimari em 1878. Em 1882, os
nordestinos já estavam no Acre boliviano onde fundaram o seringal Empresa que
daria origem a Rio Branco, configurando a ocupação do território por
brasileiros. A penetração no rio Juruá atingiu Carauari e Eirunepé em 1890;
Cruzeiro do Sul em 1904; Feijó em 1906 e Tarauacá em 1907 (Amazônia: 10.000 anos, p. 167).
[28] João B.
RODRIGUES, As heveas ou seringueiras: informações, p. 34.
[29]
Antônio J. S. Loureiro destaca que com o advento da imigração nordestina “a
cultura amazônica colonial transformou-se na cultura amazônico-nordestina,
resultante do equilíbrio entre o elemento nativo e o migrante nordestino, que
se adaptava e se incorporava à região, a ponto de serem raros os habitantes do
Amazonas, que não possuam sangue ‘cearense’ em suas veias” (Amazônia: 10.000 anos, p. 156).
[30] Samuel
BENCHIMOL, Romanceiro da batalha da borracha, p. 141.
[31]
Segundo Arthur C. F. Reis, os gaiolas eram navios a vapor construídos na
Inglaterra, Holanda, Dinamarca e Estados Unidos. Apropriados para a navegação
na região amazônica, possuíam as laterais abertas para possibilitar o
arejamento. O nome desses barcos viera do hábito de os passageiros amarrarem
redes uma por cima das outras semelhando uma gaiola. Os vaticanos eram gaiolas
de maior porte que lembravam aos seringueiros, pelo porte, a residência papal e
daí receberem essa denominação. Ao gaiola que possuía fundo chato, dava-se o
nome de “chata” ou “chatinha” quando possuía menor porte. O autor observa que
os porões, onde viajavam os passageiros de terceira classe, cheiravam mal e
ostentavam “uma promiscuidade aterradora [...]” (O seringal e o seringueiro,
p. 198-99).
[32]
“Brabo” era a alcunha que recebia o nordestino inexperiente na operação de
coleta do látex e desconhecedor das particularidades do meio em que era
recém-chegado. Quando, enfim, dominava as técnicas do trabalho e adquiria independência
para se movimentar no meio, reconhecendo-lhe os perigos e os segredos, o
nordestino passava a receber a alcunha de “manso” e já podia ser considerado
seringueiro.
[33] Manoel
José de MIRANDA NETO, O dilema da
Amazônia, p. 45-6.
[34] Arthur
C. F. REIS, O seringal e o seringueiro,
p. 178.
[35]
Os números estão divulgados em
Arhtur C. F. REIS, O
seringal e o seringueiro, p. 111.
[36] Ana
Maria DAOU, A belle époque amazônica, p. 23.
[37] Maria
de Nazaré SARGES, Belém: riquezas
produzindo a belle-époque (1870-1912), p. 21.
[38] Maria
de Nazaré SARGES, Belém: riquezas
produzindo a belle-époque (1870-1912),
p. 21.
[39]
Entre essas obras, estão o Teatro da Paz, o Mercado Municipal do Ver-o Peso, o
Palacete Bolonha, o Palacete Pinho.
[40] Maria
de Nazaré SARGES, Belém: riquezas
produzindo a belle-époque (1870-1912),
p. 83.
[41]
Apesar de essas mudanças indicarem que a cidade passava a ter melhores
condições de higiene e a desfrutar de mais opções de lazer, Maria de N. Sarges
destaca que “a expressão modernizadora de Belém subordina-se mais às
necessidades econômicas do que aos objetivos práticos, ou seja, ao atendimento
das necessidades básicas da população” (Ibid.,
p. 138). Acentuando que as medidas saneadoras e remodeladoras do espaço urbano
visavam atender principalmente aos grupos enriquecidos pelos lucros da
borracha, a autora ressalta: “[...] Entretanto, todo esse ‘progresso’ era
localizado e dirigido à área central da cidade, onde habitava a elite local e
parte da classe média nascente” (Ibid., p. 142).
[42] Márcio
SOUZA, Galvez, imperador do Acre, p. 32-3.
[43] Ana
Maria DAOU, A belle époque amazônica, p. 34.
[44]
Eduardo Ribeiro assumiu o governo provisório em 1890, quando Augusto Ximenes de
Villeroy teve de se afastar por motivo
de doença de sua esposa. Já em 1891, Eduardo Ribeiro é exonerado do cargo. Em
1892, volta ao governo para um período de administração que irá até 1896. É
nesse período que Ribeiro realiza as obras que iriam transformar a vila em
cidade (Cf. Agnelo BITTENCOURT, Dicionário
amazonense de biografias: vultos
do passado, p. 194-196).
[45] Ana
Maria DAOU, A belle époque amazônica,
p. 36.
[46] Márcio
SOUZA, Breve história da Amazônia, p. 139-140.
[47] Antônio
J. S. LOUREIRO, A grande crise
(1908-1916), p. 15.
[48] É
digno de destaque o fato de que em 1910 cada habitante da Amazônia produzia 14
vezes mais divisas do que os demais brasileiros (Cf. Antônio J. S. LOUREIRO, Amazônia: 10.000 anos, p. 177).
[49]
Optamos pela grafia Wickham por ser a
mais freqüente nos textos pesquisados. Dentre esses textos, a grafia Wickmam é empregada por Arthur Cezar Ferreira Reis, Cosme
Ferreira Filho e Samuel Benchimol.
[50] Cosme
FERREIRA FILHO, Amazônia em novas
dimensões, p. 155.
[51] Samuel
BENCHIMOL, Amazônia: formação social
e cultural, p. 218-219.
[52] Esse
romance foi publicado posteriormente (1934) com o título de Terra de Icamiaba.
[53] José
Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 117.
[54] José
Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 138-9.
[55] Cláudio
de Araújo LIMA, Coronel de barranco,
p. 311-315.
[56] Mário
Ypiranga MONTEIRO, Fatos da literatura
amazonense, p. 297.
[57] Mário
Ypiranga MONTEIRO, Fatos da literatura
amazonense, p. 41.
[58]
Ibid., p. 47.
[59]
De acordo com Carlos Reis e Ana C.M. Lopes, a “focalização pode ser definida como a representação da informação
diegética que se encontra ao alcance de um determinado campo de consciência,
quer seja o de uma personagem da história, quer o do narrador heterodiegético,
conseqüentemente, a focalização além
de condicionar a quantidade de
informação veiculada (eventos, personagens, espaços etc) atinge a sua qualidade, por traduzir uma certa
posição afetiva, ideológica, moral e ética em relação a essa informação [...]”
(Dicionário de teoria da narrativa,
p. 246).
[60] José
Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 101.
[61]
Francisco GALVÃO, Terra de ninguém, p. 89.
[62]
JACOB, Paulo Herban Maciell, Dos ditos
passados nos acercados do Cassianã, p. 37-8
[63]
Segundo pesquisa de Rodolfo Teófilo, até 1910, os nordestinos (seringalistas e
seringueiros) enviaram cerca de 30.000 contos de réis para suas famílias. O
nordestino que voltava para sua terra enriquecido era chamado paroara Cf. Samuel BENCHIMOL, Amazônia: formação social e
cultural, p. 145.
[64]
Euclides da CUNHA, Amazônia: um
paraíso perdido, p. 52-3.
[65]
Francisco GALVÃO, Terra de ninguém, p. 83.
[66]
Ramayana de CHEVALIER, No circo sem teto
da Amazônia, p. 69-70.
[67]
Em teoria da narrativa, dá-se o nome de encaixe a uma seqüência inserida no
interior da narrativa principal, compondo uma unidade autônoma, mas não
independente, uma vez que guarda relação temática com essa. (Cf. Carlos REIS e
Ana M. LOPES, Dicionário de teoria da
narrativa, p. 156).
[68]
Aristófanes CASTRO, Um punhado de vidas:
romance do “soldado da borracha”, p. 72-4.
[69] Cláudio
Araújo LIMA, Coronel de barranco, p.
243-247.
[70]
Francisco GALVÃO, Terra de ninguém,
p. 84.
[71] Francisco
VASCONCELOS, Regime das águas, p.
24-5.
[72] Adaucto
de Alencar FERNANDES, Arapixi: cenas
da vida amazônica, p. 229.
[73] José
Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p.
304-305.
[74] Leandro
TOCANTINS, Formação histórica do Acre,
v. 1, p. 156.
[75] José
Maria FERREIRA DE CASTRO, A Selva, p.
272.
[76]
Francisco VASCONCELOS, Regime das águas,
p. 28.
[77]
Francisco GALVÃO, Terra de ninguém,
p. 59.
[78] Cláudio
de Araújo LIMA, Coronel de barranco,
p. 94.
[79]
Francisco GALVÃO, Terra de ninguém,
p. 66.
[80]
Dos romances amazônicos sobre o ciclo, Terra
encharcada, do escritor paraense Jarbas Passarinho, é o único a transformar
a revolta dos seringueiros na trama central da história.
[81] Álvaro
MAIA, Beiradão, p. 120.
[82]
Antísthenes PINTO, Terra firme, p.
17-47.
[83]
Euclides da CUNHA, Amazônia: um
paraíso perdido, p. 117-118.
[84] Amazônia: um paraíso perdido, p.
118-119.
[85] Ibid., p. 119.
[86] Ibid., p. 124.
[87] Ibid., p. 125.
[88]
No caso de algumas narrativas, esse aspecto chega a ser central. Não obstante,
a escassez e a ausência da mulher no seringal são abordadas na maioria das
obras referentes ao ciclo. É necessário ressaltar que o aspecto abordado
anteriormente – a dicotomia explorador–explorado – está relacionado ao problema
da ausência da mulher à medida que é em razão da forma de exploração estabelecida
pelos patrões, através dos regulamentos, que a presença da mulher é proibida ou
limitada. Ou seja, a ganância do patrão impede a constituição da família a fim
de que o freguês, vivendo exclusivamente para a extração do látex, possa
produzir mais.
[89] Samuel
BENCHIMOL, Romanceiro da batalha da
borracha, p. 53.
[90] Alberto
RANGEL, “Maybi” In: Inferno verde, p. 244-5.
[91]
Segundo Arthur Cézar F. Reis, os seringueiros encomendavam mulheres aos patrões
da mesma forma que encomendavam gêneros alimentícios, utensílios e roupas.
Essas ‘encomendas’ entravam na contabilidade feita pelo guarda-livros como as
outras mercadorias (O seringal e o
seringueiro, p. 241). Márcio Souza critica a mentalidade utilitarista em
relação à mulher nos seringais, notando que ela passa a figurar como item
precioso na lista de mercadorias. O tratamento da mulher como mercadoria é para
o autor tão aberrante quanto o sistema de exploração do trabalho do seringueiro
(Breve história da Amazônia, p. 139).
[92] Alberto
RANGEL, “Maybi” In: Inferno verde, p.
266.
[93] Cláudio
de Araújo LIMA, Coronel de barranco, p. 255.
[94] Ibid.,
p. 257.
[95] Carlos
de VASCONCELOS, Deserdados, p. 180.
[96] Ibid.,
p. 199-200.
[97]
Ramayana de CHEVALIER, No circo sem teto
da Amazônia., p. 75.
[98] Álvaro
MAIA, Beiradão, p. 256.
[99] Carlos
de VASCONCELOS, Deserdados, p. 147-8.
[100]
Carlos de VASCONCELOS, Deserdados, p.
154.
[101]
Ibid., p. 155.
[102]
Erasmo LINHARES, O tocador de charamela,
p. 95-110.
[103]
Adaucto de Alencar FERNANDES, Arapixi:
cenas da vida amazônica, p. 60.
[104]
Francisco GALVÃO, Terra de ninguém,
p. 153.
[105]
Márcio Souza aponta inverossimilhança no romance por este implantar ideais
libertários em personagens elitizadas (A
expressão amazonense: do colonialismo ao neo-colonialismo, p. 224).
[106]
Criticando a pecha do mau seringalista reiterada pelos ficcionistas, o autor
impreca contra essa limitação, observando que ela “cria uma sensação de
vaguidade, de sensaboria, de ciclo vicioso, de lugar-comum na sociologia dos
seringais [...]” (Fatos da literatura
amazonense, p. 79).
[107]
Francisco Galvão levantou no seu “Manifesto da beleza”, publicado na revista
Belém Nova, em 1923, a
bandeira de uma arte nova, sem compromisso com o passadismo, livre da imitação
das tendências européias, uma arte renovada. No entanto, era ele próprio um ano
antes dessa publicação um praticante dessa arte que passou a repudiar e
atribuir aos “bufarinheiros do ofício.”
[108] Márcio SOUZA, A expressão amazonense: do colonialismo ao neo-colonialismo, p. 224.
[109] Djalma BATISTA, Letras da Amazônia In: Amazônia: Cultura e sociedade, p. 32
[110]
Lúcia Lippi Oliveira assim comenta sobre a contribuição desse período: “Os anos
30 são, sobremaneira, fecundos. Abrem amplas possibilidades para o debate de
idéias e propostas, assim como permitem a implementação de experiências
políticas inéditas na vida brasileira [...]” (O romance e o pensamento político
nos anos 30 In: PORTELLA et alii., O
romance de 30 no Nordeste, p. 144).
[111]
Alberto RANGEL, “Obstinação” In: Inferno verde, p. 181-207.
[112]
Nuno Vieira, que escreveu em 1932 um posfácio para a primeira edição da obra,
considera-a não um romance, mas uma alegoria.
[113]Destacamos,
a propósito, alguns trechos: “Brasil dos copistas, Brasil rococó, claudicante,
impudico e meloso. Brasil do avesso, que a tristeza do luso estragou. Brasil
sentimental, que gastou nos sambas da prosa, todo o dinheiro da família. Brasil
incapaz de pagar o inglês e de fazer ditadura. Este não presta. O outro, sim. É
que é o bom e o indivisível. O moderno. O que é ingênuo para simplificar-se. O
que transforma a riqueza, o amor e a saúde, em reservas, para socorrer-se e
administrar-se, por si e para si.” (Abguar BASTOS, Terra de Icamiaba, p. 125).
[114]
Abguar BASTOS, Terra de Icamiaba p. 53
[115]
As descrições primam por criar um sentido poético: “As árvores estão com febre
e deixam cair suas flores faiscantes sobre o chão recamado de
sombras”(Ibid., p. 99). “As flores
amarelas do pau d’arco jogam conféti no poente.” (Ibid., p. 38).
[116]
Hélio Viana, em conferência realizada em 1971 no Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro por ocasião do centenário de nascimento de Alberto
Rangel, defende a originalidade de estilo deste autor, alegando principalmente
que seus estudos amazônicos foram anteriores aos de Euclides da Cunha, uma vez
que este foi à Amazônia, comissionado pelo Ministério da Relações Exteriores,
em missão de demarcação de limites, em 1905, quando Rangel já ali se
encontrava. Na verdade, a aproximação que existe entre as obras desses autores
não se limita à discussão de quem teve precedência na chegada à região amazônica,
nem na data de publicação das obras. Sobre este último fato, basta destacar que
À margem da história foi publicada
postumamente. As obras de Cunha e de Rangel aproximam-se porque professam em
sintonia o discurso positivista sobre o meio amazônico.
[117]
Na definição de Mário Ypriranga Monteiro, o absentismo se caracteriza pela
falta de vivência que tem o autor do meio que enfoca em sua obra. Dessa forma,
ele cria através do talento ou da imaginação ou baseado em conhecimentos que
não os da experiência direta. O autor absentista pode ser total ou parcial,
sendo o último aquele que, apesar de ter estado no meio que retrata, conheceu-o
superficialmente. Monteiro chama a atenção de que o autor absentista também
pode criar uma falsa percepção da realidade. Não condena o trabalho de criação
do absentista total, mas faz notar “que todo aquele que escreve, mesmo
tratando-se de ficção, arca com a responsabilidade de transmitir informações,
de ilustrar, ou de recriar estados sociais, de manter-se numa posição de respeito
à fidelidade de um compromisso não escrito mas aberto às sanções de fato (e até
de direito, não raro), compromisso esse que se espera contenha apreciável
volume de interesse honesto em permutar com o leitor, usuário que espera por
sua vez encontrar na obra-de-arte um motivo estético ou algo mais que isso,
componente satisfatória , uma terapêutica [...]” (Fatos da literatura amazonense,
p. 65).
[118] José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva,
p. 21.
[119]
José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva,
p. 26.
[120]
Ibid., p. 29-30.
[121]
Em “Um romance amazônico”, Humberto de Campos aponta a originalidade de A selva justamente pelo fato de o
romance ter sido escrito por um autor que viveu no seringal. Para Campos,
somente a vivência neste poderia resultar na sua justa expressão. Comprova a
legitimidade da escrita de Ferreira de Castro e absolve-o das críticas de ter
sido autor de inverdades, recorrendo a exemplos presenciados por ele próprio
como gerente de seringal, demonstrando que Ferreira de Castro não expressou
exageros em sua obra (1962, p. 427-467).
[122]
Jaime BRASIL, Ferreira de Castro: a
obra e o homem, p. 21.
[123]
MAGALHÃES JÚNIOR Apud Jaime BRASIL, Ferreira
de Castro: a obra e o homem, p. 95.
[124]
Abordando os problemas que envolvem a nacionalidade na literatura brasileira, Lúcia
Miguel Pereira questiona a sua existência, notando que as realidades
brasileiras não podem apresentar uma feição homogênea: “[...] a brasilidade
totalitária é um mito, uma lenda, um tabu a que se apega a nossa vaidade. Não
existe, nem poderia existir, ao menos no sentido em que o queremos tomar, de
feitio moral especificamente brasileiro, igualando os homens do Rio Grande do
Sul, e os diferenciando dos outros povos [...]” (Regionalismo e espírito
Nacional In: A leitora e seus personagens:
seleta de textos publicados em periódicos (1931-1943) e em livros, p. 39).
Quanto a Ferreira de Castro ser um escritor estrangeiro cujo romance
trata da realidade amazônica, a autora faz a seguinte apreciação: “[...] É
mesmo de notar que um dos grandes romances sobre o Brasil (ou sobre a
Amazônia?) seja de um estrangeiro. Ao fato acidental de ter nascido em Portugal
o Sr. Ferreira de Castro devemos não se ter o ‘espírito brasileiro’ encarnado
num seringueiro.” (Ibid, p. 39).
[125]
José Maria FERREIRA DE CASTRO. Pequena história de A selva. In: José Maria FERREIRA DE CASTRO. A selva, 1972, p. 27
[126]
Jaime Brasil faz notar que o romancista, enquanto homem independente, “detesta
a política e as suas baixas manobras, mas ama a liberdade com fervor
religioso.” (Ferreira de Castro: a
obra e o homem, p. 52). A feição humanista da personalidade de Ferreira de
Castro é ressaltada na mensagem que lhe é entregue em Portugal por vários
intelectuais em 20 de junho de 1953, subscrita por milhares de cidadãos
portugueses: “[...] Todos aqueles que conhecem Ferreira de Castro sabem que a
piedade humana, que vibra em cada uma das suas páginas, não é um simples
processo literário e muito menos um artifício do seu talento de escritor; esse
mesmo amor e compreensão vivem no romancista, são a sua força, a sua riqueza e
tormento, o traço mais fundo na sua personalidade, são ele mesmo debruçado
sobre a dor do mundo. Dificilmente se encontrará outro escritor cuja obra seja,
tão fielmente, a expressão da sua própria alma. (Apud Jaime BRASIL, Ferreira de Castro: a obra e o homem, p.
76).
[127]
José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 30.
[128]
Ibid., p. 39-40.
[129] José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva,
p. 41-2.
[130]
José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 54-55
[131]
José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 125.
[132]
Ibid., p. 193.
[133]
José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 204.
[134]
Ibid., p. 247.
[135]
José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva,
p. 236-7.
[136]
José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 217-8.
[137]
Ibid., p. 277.
[138]
José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva,
p. 232.
[139]
Ibid., p. 249.
[140]
Ibid., p. 244.
[141]
Em seu livro Amazônia, mito e literatura,
Marcos Frederico Krüger salienta: “o fogo como elemento de destruição é, tal
como o dos duplos, motivo mitológico bastante utilizado na produção literária
[...]” ( p. 177).
[142]
O agregado é personagem recorrente na ficção do ciclo. No romance Terra de ninguém, é Epifânio, negro que
atua como feiticeiro no seringal; em Dos
ditos passados nos acercados do Cassianã, é o índio Pacatuba, afilhado do
seringalista; em Coronel de barranco,
Inácio, caboclo que vem parar no seringal após lutar junto a Plácido de Castro.
Geralmente aparecem como rebotalhos devotados e fiéis, mas em romances como A selva e Dos ditos passados nos acercados do Cassianã revoltam-se e atentam
contra a vida do patrão.
[143]
Márcio SOUZA, A expressão amazonense:
do colonialismo ao neo-colonialismo, p.
137.
[144]
Essa premissa para criação de uma novelística
é exposta por Alejo Carpentier em Literatura
e consciência política na América
Latina ( p. 10).
[145]
Jaime BRASIL, Ferreira de Castro: a
obra e o homem, p. 47.
[146]
Sobre as fontes da engendração desse discurso, ver: Neide GONDIM, A invenção da Amazônia, 1994.
[147]
José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva,
p. 114.
[148]
José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 281.
[149]
Ibid., p. 291.
[150]
Fábio LUCAS, O caráter social da ficção do Brasil,, p. 17.
[151]
Jorge TUFIC, Existe uma literatura
amazonense?, p. 21.
[152]
José Maria FERREIRA DE CASTRO Apud
Humberto de CAMPOS, Um romance amazônico. In:.Crítica, p. 432.
[153]
José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 306.
[154]
FERREIRA DE CASTRO estudava a produção dos autores brasileiros da geração de
30, conforme se evidencia por artigo que publica em 1934, intitulado
“Literatura social brasileira”. O autor é considerado um precursor do neo-realismo
português, embora o termo tenha sido efetivamente empregado por Joaquim
Namorado, no artigo “Do neo-realismo, Amando Fontes”, em 1938. Um dos
principais postulados do neo-realismo constitui a denúncia social,
especialmente da injustiça praticada contra os humildes. (Cf. Massaud MOISÉS,
Neo-Realismo In: Dicionário de literatura
portuguesa, p. 244).
[155]
Alfredo BOSI, História concisa da
literatura brasileira, p. 443.
[156]
José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 212-13.
[157]
Richard BERMANN apud Jaime BRASIL, Ferreira
de Castro : a obra e o homem, p.
198.
[158]
Alberto VIVIANI apud Jaime BRASIL, Ferreira
de Castro: A obra e o homem, p. 112.
[159] A frase encontra-se no prefácio escrito
por Euclides da Cunha para a obra Inferno
verde, de Alberto Rangel (Euclides da CUNHA In: Alberto RANGEL, p. 10). As
considerações de Euclides da Cunha sobre o caráter desconhecido e fabuloso da
região amazônica são tecidas ao longo desse prefácio e de outras obras suas,
como, por exemplo, À margem da história.
[160]
João da Rocha Fagundes PEREGRINO JÚNIOR, Grupo nortista. In: Afrânio COUTINHO
(Dir.). A literatura no Brasil, p.
153.
[161]
Humberto de CAMPOS, Um romance amazônico. In: Humberto de CAMPOS, Crítica,
p. 429.
[162]
Humberto de CAMPOS, O furto. In: Humberto de CAMPOS, O monstro e outros contos,
p. 89.
[163]
Márcio SOUZA, A expressão amazonense:
do colonialismo ao neo-colonialismo, p.
125.
[164]
Ibid., p. 140.
[165]
José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 114-115.
[166]
Sônia BRAYNER, Labirinto do espaço
romanesco, p. 29.
[167]
Eloína Monteiro dos SANTOS, Uma liderança
política cabocla: Álvaro Maia, p.
22-3.
[168]
A estréia de Álvaro Maia no mundo das letras se deu em 1904, aos onze anos,
quando foi publicado num jornal infantil o poema “Cabelos negros”, de sua
autoria. Em 1925, foi escolhido príncipe dos poetas amazonenses no concurso
promovido pela revista Redenção.
Tendo tido seus textos poéticos publicados em jornais, só veio a reuni-los em
livro em 1958, sob o título Buzina dos
paranás. Durante as décadas de 1950 e 1960, publica os livros contendo narrativas
e o romance Beiradão. O autor
colaborou com a fundação da Sociedade Amazonense de Letras, posteriormente
denominada Academia Amazonense de Letras.
[169]
Em Gente dos seringais, Álvaro Maia
esclarece que as narrativas que compõem o livro se passam na região do Médio
Madeira na confrontação com os rios Maici, Machado e Jamari, à margem direita,
e com os rios menores como o Puruzinho e o Mucuim, à margem esquerda.
Depreende-se nas demais obras a mesma localização.
[170]
Álvaro MAIA. Introdução, In: Gente dos seringais,
p. 14.
[171]
Ibid., p. 15.
[172]
Jean-Paul SARTRE, O que é literatura?,
p. 104.
[173]
Jean-Paul SARTRE, O que é literatura?,
p.105.
[174]
Walter BENJAMIN, O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.
In:Walter BENJAMIN, Magia e técnica, arte
e política (ensaios sobre literatura e história da cultura), p. 201.
[175]
Álvaro MAIA, Beiradão, p. 23.
[176]
Ibid., p. 161.
[177]
Álvaro MAIA, Beiradão, p. 28-29.
[178]
Álvaro MAIA, Beiradão, p. 90.
[179]
Ibid., p. 72.
[180]
Neide GONDIM. Dos bamburrais aos beiradões. In: Álvaro MAIA, Beiradão,
p. 19
[181]
Álvaro MAIA, Beiradão, p. 174.
[182]
Álvaro MAIA, Beiradão, p. 160.
[183]
Ibid., p. 171.
[184]
Álvaro MAIA, Beiradão, p. 178-9.
[185]
Ibid., p. 181.
[186]
Álvaro MAIA, Beiradão, p. 223.
[187]
Ibid., p. 266.
[188]
Álvaro MAIA, Beiradão, p. 266.
[189]
Ibid., p. 288.
[190] Ibid.,
p. 293.
[191]
Álvaro MAIA, Beiradão, p. 291-2.
[192]
Ibid., p. 304-5.
[193]
Álvaro MAIA, Beiradão, p. 344.
[194]
Ibid., p. 364.
[195]
Álvaro MAIA, Beiradão, p. 152.
[196]
Ibid., p. 180.
[197]
Álvaro MAIA, Beiradão, p. 200.
[198]
Ibid., Beiradão, p. 199.
[199]
Álvaro MAIA, Canção de fé e esperança. In: Revista
UBE-Amazonas (Álvaro Maia – Poliantéia), p. 150.
[200]
Idem, Beiradão, p. 193.
[201]
Eloína Monteiro dos SANTOS, Uma liderança
política cabocla: Álvaro Maia, p. 114.
[202]
Álvaro MAIA, Beiradão, p. 329.
[203]
Ibid., p. 330.
[204]
Álvaro MAIA, Beiradão, p. 337.
[205]
Eloína Monteiro dos SANTOS, Uma liderança
política cabocla: Álvaro Maia, p. 130.
[206]
André ARAÚJO, Traços de uma sociologia na obra de Álvaro Maia. In: Revista da UBE–Amazonas (Álvaro Maia –
Poliantéia), p. 69.
[207]
A esse respeito, Eloína Monteiro dos Santos destaca: “[...] As idéias
regionalistas defendidas pelo glebarismo nesse momento articulam-se com aquelas
peculiares às do Partido Revisionista [...]” (Uma liderança política
cabocla: Álvaro Maia, p. 40).
[208]
Álvaro MAIA, “Canção de fé e esperança”. In: Revista da UBE-Amazonas
(Álvaro Maia – Polianteia), p. 153.
[209]
Álvaro MAIA, Beiradão, p. 369.
[210]
Arthur C. F. REIS, O seringal e o
seringueiro, p. 178.
[211]
Álvaro MAIA, Beiradão, p. 148.
[212]
Eloína Monteiro dos SANTOS, Uma liderança
política cabocla: Álvaro Maia, p. 87-90.
[213]
Graduado em Ciência da literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rogel Samuel exerce nessa universidade a função de professor doutor adjunto à
época da publicação de O amante das
amazonas (1992). Como analista literário, publicou Crítica da escrita (1979), organizou e colaborou na publicação de Literatura básica (1985) e Como curtir o livro: o que é teolit? (1986). No campo ficcional, o autor
produziu prosa e poesia. Publicou, em 1991, 120
poemas.
[214]
De acordo com a autora, os escritores-críticos caracterizam-se essencialmente
como escritores (ficcionistas) que tomaram a si o papel de escrever crítica em
razão de um descontentamento com a atuação da crítica profissional: “[...] Os
ataques e as chacotas dos escritores contra os críticos literários constituem
um vasto repertório, capaz de preencher vários volumes. Na ausência de uma
instância superior que regulasse o dissenso, e no descontentamento com as
instâncias ‘inferiores’ que se arrogavam o direito de os julgar, os criadores
puseram-se a praticar uma espécie de contra-crítica, estimada por eles como
mais competente, ou pelo menos mais eficiente, por estar ligada à própria
experiência criadora.”(Leyla PERRONE-MOISÉS. Altas literaturas:
escolha e valor na obra crítica de escritores modernos, p. 143).
[215]
Ítalo CALVINO, Se um viajante numa noite
de inverno, p. 16.
[216]
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas,
p. 51.
[217]
Ibid., p. 59.
[218]
Rogel Samuel, O amante das amazonas,
p. 51.
[219]
Ibid., p. 9.
[220]
Mikhail BAKHTIN, A tipologia do discurso na prosa. In: Luiz COSTA LIMA (org.), Teoria da literatura em suas fontes, p. 489-509.
[221]
Mikhail BAKHTIN, A tipologia do discurso na prosa In: Luiz COSTA LIMA (Org.) Teoria da literatura em suas fontes, p. 500.
[222]
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas,
p. 5-6.
[223]
Ibid., p. 16.
[224]
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas,
p. 16.
[225]
Ibid., p. 10-11.
[226]
Ibid., p. 32.
[227]
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas,
p. 43.
[228]
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas,
p. 14.
[229]
Ibid., p. 14.
[230]
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas,
p. 38-39.
[231]
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas,
p. 89.
[232]
Ibid., p. 89.
[233]
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas,
p. 82.
[234]
Leyla PERRONE-MOISÉS, Altas literaturas:
escolha e valor na obra crítica de escritores modernos, p. 156.
[235]
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas,
p. 33-5.
[236]
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas,
p. 8.
[237]
Ibid., p. 8.
[238]
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas,
p. 84.
[239]
Leyla Perrone-Moisés comenta que a novidade também é um valor prezado pelos
escritores-críticos: “[...] A novidade valorizada pelos escritores críticos
modernos é principalmente uma novidade de expressão que rompe com os velhos
hábitos e surpreende o leitor [...]” (Altas
literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores modernos, p.
171).
[240]
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas,
p. 5.
[241]
Benedito NUNES, O tempo na narrativa,
p. 38.
[242]
Ibid., p. 40.
[243]
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas,
p. 9
[244]
Benedito NUNES, o tempo na narrativa, p. 32.
[245]
Rogel SAMUEL, Crítica da escrita, p.
47. (O “pai” constitui uma personagem do conto “A terceira margem do rio”,
analisado pelo autor na primeira parte desse livro).
[246]
É preciso não perder de vista, todavia, que Samuel explicita a concepção de
Roland Barthes desse conotador: “Os semas [...] são considerados por Barthes,
como a voz da pessoa, dos lugares e dos objetos: o sema é o conotador, por um
entusiasmo do texto da configuração de caráter destes elementos, define uma
interpretação ideológica [..]”(Rogel SAMUEL, Crítica da escrita, p. 47).
[247]
A esse respeito, é oportuna a complementação de Beth Brait: “Ao encarar a
personagem como ser fictício, com forma própria de existir, os autores situam a
personagem dentro da especificidade do texto, considerando a sua complexidade e
alcance dos métodos utilizados para apreendê-la. (A personagem, p. 51).
[248]
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas,
p. 21.
[249]
Ibid., p. 22.
[250]
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas,
p. 77
[251]
Ibid., p. 23.
[252]
Sobre o índice, Donald Schüler informa: “[...] Os índices remetem ao caráter
das personagens, à atmosfera, dizem respeito ao significado, em contraste com
as funções que se restringem ao desenrolar dos acontecimentos” (Teoria do romance, p. 54).
[253]
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas,
p. 67-68.
[254]
Ibid., p. 69.
[255]
Ibid., p. 70.
[256]
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas,
p. 70.
[257]
Ibid., p. 72.
[258]
Arthur Cezar Ferreira REIS, A conquista
espiritual da Amazônia, p. 113.
[259]
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 54.
[260]
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 54.
[261]
Ibid., p. 57.
[262]
Ibid., p. 57.
[263]
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas,
p. 95.
[264]
Rogel SAMUEL, Crítica da escrita, p.
65.
[265]
Ibid., p. 80.
[266]
Alejo Carpentier, Literatura e
consciência política na América Latina, p. 9-34.
[267]
“A memória é um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento [...]”
(Ecléa BOSI, Memória e sociedade: lembrança de velhos, p. 39.
[268]
José Maria FERREIRA DE CASTRO, Pórtico. In: José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 25.
[269]
Rogel SAMUEL, O amante das amazonas,
p. 10.
[270]
A carta de Ferreira de Castro é reproduzida por Álvaro Maia na primeira edição
do romance Beiradão, de 1958.
[271]
Flávio KOTHE, Fundamentos da teoria literária,
p. 388.
[272]Rogel
Samuel, Crítica da escrita, p. 28.
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